quarta-feira, 18 de outubro de 2017

#RENASCENÇA E REFORMA





Renascença e Reforma são movimentos antagônicos, na música assim como nos outros setores da vida. Não é possível defini-los em termos musicais, porque o novo século não significa, por enquanto, mudança de estilo: continua-se a escrever em estilo “flamengo”; mas o centro desloca-se para outras regiões, a França, a Alemanha, a Itália, a Inglaterra. Também se nota uma diferença de natureza social: nos países que continuam fiéis à fé romana, a música sai, mais que antes, do recinto das igrejas para encher a vida da sociedade aristocrática; nos países que aderem à Reforma, a música retira-se, principalmente, para a igreja, adaptando-se às formas mais simples da devoção ao novo.
A região franco-flamenga foi o foco de irradiação da música renascentista para onde havia sociedades aristocráticas que continuavam fiéis ao credo de Roma, como na Alemanha do Sul e na Itália; ou então, sociedade que escolheu uma via media entre a velha fé e os rigores do calvinismo, como na Inglaterra elisabetiana.
Mas os primeiros portadores dessa nova mensagem musical ainda são "flamengos”.

O primeiro grande nome é Philippe de Monte (1521-1603), natural de Mechelen (Malines), que trabalhou na Itália, para tornar-se depois regente da capela do imperador alemão Rodolfo II em Praga. Sua Obra imensa é hoje um dos objetos preferidos dos estudiosos da musicologia, mas sem ter saído desse círculo estreito; houve oportunidade de ouvir sua bela Missa Inclina cor meum.

O lugar que hoje se pretende conceder a Monte pertence, tradicionalmente, e com razão, a Orlandus Lassus (Roland de Lattre) (c. 1530-1594) (Edição das Obras Completas por F. X. HaberI e A. Sandberger, 60 vols., 1894 e seguintes; A. Sandberger, Seitraege zur Geschichte der Muenchner Hofkapelle unter Orlandus Lassus, 2 vols., Munique, 1894-1895; Ch. van den Borren, Orlandus Lassus, Paris, 1920; A. Sandberger, Orlandus Lassus und die geistigen Stroemungen seiner Zeit, Munique, 1926; E. Schmidt, Orlando di Lasso, 2 ed„ Wiesbanden, 1945) : natural de Mons, regente de coros na França e na Itália; de 1560 até sua morte, regente da capela da corte de Munique, centro do catolicismo romano na Alemanha do Sul.

Seu universalismo lembra os grandes gênios da Renascença, os Leonardo, os Miguel Ângelo. Sabe dirigir as massas sonoras como se fosse um Handel da época do canto a capela. Assim como Handel, é Lassus cosmopolita: é flamengo, francês, italiano e alemão ao mesmo tempo. O espírito e a técnica da música contrapontística flamenga são inconfundíveis em grande parte dos seus inúmeros motetes: o Salve Regina (4 vozes) e o Pater Noster em fá maior, que pertencem ao repertório das associações corais; o motete Timor et Tremor, que ainda continua sendo cantado no Domingo de Páscoa nas igrejas de Munique e Viena; os Magnificats, o motete Justorum animae e o mais famoso de todos, Gustate et videte, do qual conta a lenda: foi escrito cm Munique, para procissão que pediu chuvas depois de longo período de seca; e comoveu de tal maneira o céu que a chuva logo começou a cair.

São obras “góticas”. Mas seu autor também escreveu, com a mesma mão infalivelmente segura do efeito sonoro, chansons eróticas com letra francesa (Quand mon mari, Margot, J’ai cherchê), às vezes humorísticas (Le Marchê d’Arras), e coros latinos para as tertúlias alegres de estudantes (Fertur in convivio). É autor de madrigais italianos como Amor mi strugge e Matona mia cara.

É latinista erudito, pondo em música textos de Virgílio (Tityre) e Horácio (Beatus Me). E é, apesar de certas veleidades reformatórias, um devoto católico romano, em cuja Obra já se anuncia a Contra-Reforma. Esse grande humanista, humorista e homem da sociedade aristocrático é o autor do Magnum opus musicum (publicado postumamente em 1604): nada menos que 516 motetes para todas as festas e comemorações do ano litúrgico, de uma variedade infinita de técnicas, inspirações e emoções: o extático Justorum animae, descrevendo a ascensão das almas dos justos para o céu, e o amargo Tristis es, anima mea, de pessimismo brahmsiano, o retumbante Creator omnium e o solene Resonet in laudibus, e tantos outros. No entanto, a obra capital de Orlandus Lassus, talvez a maior do século, são os Psalmi poenitentiales (1560), isto é, os Salmos nºs 6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142 (conforme a numeração da Vulgata), de profunda contrição e energia sombria; sobretudo o Salmo 50 (Miserere), e o Salmo 129 (De Profundis). É a música mais emocionada, mais dramática de toda a época do canto a capela, não acompanhado. No coro profano Hola, Charon (1571), Lassus tinha evocado a Morte com o espírito pagão de um homem da Renascença. Nas Sacrae Lectiones ex Job (1565) e nas Lamentationes Hieremiae (1585) já o inspiram textos pessimistas da Vulgata do Velho Testamento. Mudam os tempos. No fim do século, Munique será o centro da Contra-Reforma na Alemanha. Nas Lagrime di San Pietro (1594) já se sente algo de espírito barroco, talvez devido ao texto, do poeta italiano Luigi Tansillo.

Orlandus Lassus é, pela intensidade do seu sentimento profano e pela angústia religiosa, o mais “moderno” entre os mestres “antigos”. Sua síntese de construção rigorosamente arquitetônica e de abundante lirismo já fez pensar na síntese de elementos equivalentes em Brahms. Mas as comparações dessa natureza nunca deixam de ferir a consciência historicista. A arquitetura polifônica de Lassus não tem nada que ver com a polifonia instrumental de um pós-beethoveniano; e o seu lirismo reflete o estado de espirito de uma sociedade da qual só subsistem recordações livrescas.

Essa sociedade aristocrática é a da Renascença, mais exatamente a do Cinquecento, de uma época já sacudida pelas tempestades da Reforma e Contra-Reforma, enquanto a aristocracia está ameaçada de se transformar em mero ornamento das cortes de príncipes absolutos. A música dessa sociedade é, na França, a chanson, cujo grande mestre é Clément Jannequin (1485-1560); e, na Itália, o madrigal, a canção a 4 ou 5 vozes, cantada por damas e cavalheiros, sem acompanhamento (embora mais tarde se admita o do alaúde); espécie de motete profano, as mais das vezes de lirismo erótico. Uma arte fina e requintada que tem, hoje, o sabor de recordação de álbum de nobre família extinta. Mas o madrigal não é um gênero inteiramente morto. Algumas dessas pequenas obras de Baldassare Donato Donati (m. 1603) e Giovani Giacomo Gastoldi (1556-1622) ainda são cantadas pelas associações corais, embora em arranjos pouco fiéis ao espirito dos originais, feitos por compositores pós-românticos do século XIX, como Peter Comelius e Herzogenberg: são especialmente conhecidos os madrigais Tu tti venite amati e A lieta vita de Gastoldi.

O maior dos madrigalistas italianos é Luca Marenzio (c. 1550-1599), que foi chamado "il piú dolce cigno”. Sua arte é estupendamente expressiva; não evita cromatismos, modulações audaciosas, dissonâncias para interpretar textos como Già torna, O voi che sospirate, Scaldava ií sol, Cantiam la bella Clori, In un boschetto, Se il raggio dei sol, Scendi dal paradiso— às vezes lembra a arte de Hugo Wolf. É a música com que se divertiram, nas pausas da conversação sobre filosofia platônica, literatura latina e educação dos nobres, as princesas, literatos e prelados reunidos na corte de Urbino: das conversas que vivem para sempre na obra literária mais nobre da Renascença italiana, no Cortegiano de Baldassare Castiglione.

O madrigal, embora forma arcaica, ainda hoje não morreu de todo; sobrevive especialmente na Inglaterra, onde se cultiva a memória da música elisabetiana. Música de uma sociedade aristocrática que imita assiduamente as maneiras finas dos italianos; e que, pelo menos em parte, guarda fidelidade às expressões estéticas do mundo católico; mas a Reforma já liberou as forças de vitalidade profana da “merry old England" da Rainha Elisabeth e de William Shakespeare.

Entre os compositores elisabetianos há um número surpreendentemente grande dos que continuam fiéis ao catolicismo romano, apesar do rigor com que a monarquia impôs a separação da Igreja Anglicana de Roma; talvez porque as novas formas litúrgicas não concederam à música as mesmas oportunidades de outrora. No terreno profano cultivam o madrigal, as composições para alaúde e uma espécie de elementar música pianística: o instrumento é chamado de “Virginal”. É uma arte aristocrática, que também sabe interpretar os cris de la rue, do povo. Nunca foi tão inteiramente esquecida como a música renascentista no Continente europeu. Há, na Inglaterra moderna, numerosas associações de madrigal; e no piano ou no cravo se toca, ainda ou de novo, a música de “Virginal” (J. Kerraan, T h e Elisabelhan Madrigal, Oxford, 1963).

O gênio da música elisabetiana é William Byrd (1543-1623) (Edição das Obras por H. Fellowes, Londres, 1937 e seguintes; F. Howes, William Byrd, Londres, 1928; E. H. Fellowes, William Byrd, 2.a ed„ Londres, 1948), que ficou fiel à fé romana, apesar de desempenhar o cargo de maestro da capela da rainha protestante. Obra meio clandestina foi, portanto, sua Missa para 5 vozes (1588), por causa da qual a posteridade lhe concedeu o título de “Palestrina inglês”: obra realmente de grande valor, mas menos palestriniana do que "gótica”, "flamenga”. No resto, Byrd foi um daqueles gênios universais da Renascença, dominando todos os gêneros. É estupenda a amplitude emocional dos seus Psalms, Sonnets and Songs of Sadness and Piety. Seus madrigais (Lullaby, This Sweet and Merry Month, Though Amaryllis Dances) lembram o ambiente erótico e alegre das comédias da primeira fase de Shakespeare. A "merry old England” também vive na música "pianística” de Byrd, para o Virginal, na qual o “Palestrina inglês” se revela de estranha modernidade, deixando de lado a polifonia pedante para escrever variações espirituosas sobre danças aristocráticas e populares: Carmaris Whistle, Sellengefs Round, The Bells e a Pavane Earl of Salisbury são, até hoje, música viva.

Os outros cultivam parcelas desse feudo musical. Thomas Morley (1557-1603) é o cantor da vida nos campos e do bucolismo de veraneio; forneceu grande parte das peças que são cantadas pelas modernas associações madrigalescas: Since my Tear, New is the Month of Maying, Sing We and Chant. John D owland (1563-1626) foi grande compositor para o alaúde, famoso pelas suas Pavanas majestosas e sombrias. A gente mais simples parece ter preferido suas canções melancólicas (Go, Crystal Tears; Shall I Sue-, Weep You no More). Assim foi “Dowland... whose Heavenly Touch—Upon the Lute doth Ravish Human Sense’’: os versos estão no Passionate Pilgrim, de William Shakespeare. O último dos grandes elisabetianos foi Orland Gibbons (1583-1625), que também escreveu “doces” madrigais, talvez os mais belos de todos: Silver Swan e What is our Life são as pièces de rêsistance do repertório das associações madrigalescas. Mas Gibbons já pertence à época “jacobéia”; as preocupações religiosas voltaram.

Vive em Gibbons, pela última vez, algo do espírito de Byrd: no Service em fá maior, espécie de missa anglicana; e no Hosanna to the Son of David, que os coros inglêses ainda costumam cantar nos dias de Natal. Depois, o puritanismo vitorioso nas guerras civis acabou, dentro e fora da igreja, com a música.

O calvinismo francês não foi tão radicalmente infenso à música, pelo menos no início. Contudo, o regime democrático das comunidades calvinistas não permitiria a posição privilegiada de um coro de músicos profissionais, executando obras complicadas às quais os outros fiéis só poderiam assistir passivamente, a título de edificação estética. O culto tem de ser de todos. Um grande polifonista como Claude Goudimel (c. 1505-1572), uma das vítimas dos massacres de Huguenotes na província, depois da Noite de São Bartolomeu, devia limitar sua arte a formas mais simples, para a comunidade toda cantar seus 76 Salmos (1565), dignos e severos. Essa simplificação e, mais tarde, a exclusão de toda a música instrumental dos templos calvinistas, com a única exceção de prelúdios e acompanhamentos do órgão, acabaram com a música no calvinismo francês e holandês. Dentro do mundo protestante, a arte foi salva pelo acaso feliz da musicalidade de Lutero.

Talvez nem fosse acaso. A esse respeito como a outros, Lutero foi o porta-voz da nação germânica, cuja profunda musicalidade é o mais importante elemento em toda a história da música moderna. Mas só da moderna. Na Idade Média e nos séculos XV e XVI a contribuição dos alemães não é de primeira ordem. O único nome indispensável é o de Jacobus Gallus (Handl) (1550-1591), que os historiadores da sua nação chamam de "Palestrina alemão”; cada nação pretende ter tido seu Palestrina, no século XVI. O apelido é inadmissível quanto ao estilo de Gallus, que é “gótico-flamengo”. Mas um grande mestre foi esse último polifonista católico alemão: dão testemunho motetes como O magnum mysterium, Laudate Dominum e o comovente Ecce quomodo moritur, que ainda é cantado, na Semana Santa, nas igrejas da Baviera, Áustria e Renânia.


Para essa arte polifônica, cantada por coros separados do povo, o culto luterano não tinha uso. Mas tampouco pensava Lutero em excluir das igrejas a música, que lhe parecia a maneira mais digna de adorar Deus: pois à Igreja invisível do luteranismo corresponde a arte invisível do Coral. Este tem só o nome em comum com o Coral Gregoriano da velha Igreja. O Coral luterano é coisa completamente diferente: é uma melodia sacra popular ou de origem popular e depois harmonizada, cantada não por um coro de cantores profissionais, mas pela comunidade inteira, acompanhada pelo órgão, ao qual também se concede o direito de preludiar o canto ou de orná-lo com variações livres. Pelo Coral entrou na Igreja luterana um importante e infinitamente rico elemento folclórico; ao mesmo tempo, salvou-se a relativa independência musical do órgão; e pouco mais tarde já não haverá objeções, da parte das autoridades eclesiásticas, contra a participação de outros instrumentos e contra a elaboração mais sutil de certos temas corais em obras que só um coro de cantores profissionais poderia executar: as cantatas. Assim encontramos nada menos que 1244 "versões” de corais com acompanhamento instrumental na obra Musae Sionae, de Michael Praetorius (1571-1621). Já estão reunidos os elementos de que se constituirá a Obra de Bach.



Nenhum comentário:

Postar um comentário