terça-feira, 17 de outubro de 2017

A POLIFONIA VOCAL






O #OUTONO DA IDADE MÉDIA

A primeira grande época da música ocidental, a da polifonia vocal, costuma ser chamada "medieval”. Mas esse adjetivo não é exato. Medieval é a Ars Antiqua. Medieval é a Ars Nova. Mas as obras fundamentais sobre aquela grande época (W. Ambros, Geschichte der Musik, 8 vols., Breslau, 1862-1882. {Nova edição, completada por H. Leichtentritt, Leipzig, 1909}; H. Besseler, Die Musik des Mittelalters und der Renaissance, Potsdam, 1828; A. Pirro, Histoire de Ia musique de la fin du XIV. siicle à Ia fin du X V .« siècle, Paris 1940.) tratam também e sobretudo de Josquin Des Près e de Orlandus Lassus, de Palestrina, Victoria e dos dois Gabrieli, um pouco indistintamente: toda a música dos séculos XV e XVI é chamada, desde os começos da historiografia musical na época do romantismo, de "música antiga”, em relação à “nova”, isto é, desde o início do século XVIII. Nessa perspectiva confundem-se a Idade Média, a Renascença e parte do Barroco. Mas, na verdade, a Idade Média propriamente dita já não faz parte da grande época na qual predomina a polifonia vocal.

Quanto à primeira fase dessa época se costuma falar em mestres "flamengos”. O adjetivo significa menos uma nação do que determinado espaço geográfico: de Paris e Dijon, através de Reims e Cambrai e Mons até Bruxelas, Bruges e Antuérpia, quer dizer, a Bélgica e o Norte da França. Região na qual se falava, então, o flamengo e o francês, aquela língua mais no Norte e para o uso cotidiano, esta mais para os fins superiores da sociedade e da arte.

É o espaço então ocupado pelo ducado de Borgonha, que durante o século XV é a região mais altamente civilizada ao Norte dos Alpes. Só no fim do século, a Borgonha será desmembrada, ficando parte com a França, enquanto a outra parte formará os Países-Baixos austríaco-espanhóis.

A música da Borgonha do século XV corresponde à pintura dos Van Eyck, Roger van der Weyden, Hugo van der Goes e Memling; à poesia de Eustache Deschamps e Villon ; à arquitetura flamboyante, último produto do espírito gótico já em decomposição.

É a época à qual o grande historiador holandês Jan Huizinga deu o apelido inesquecível de “Outono da Idade Média”.

É uma civilização caracterizada pelas requintadas formas de vida de uma corte, a da Borgonha, na qual o feudalismo já perdeu sua função política, social e militar, fornecendo apenas regras de jogo como num grande espetáculo pitoresco. O fundo é menos requintado: a grosseria popular invade os costumes aristocráticos; na arte, ela aparece como espécie de folclorismo sabiamente estilizado, na poesia de Villon. Os costumes são brutais. Mas por esses pecadores rezam e cantam os monges e as beguinas, vozes da angústia religiosa de uma época de agonia espiritual. As formas musicais dessa civilização são a Missa e o Motete cantados, a capela, isto é, sem acompanhamento instrumental.

Parecem-se com as construções do gótico flamboyant, os paços municipais de Louvain e Audenarde, feitos como de rendas de pedra: arabescos e ornamentos infinitamente complexos. A ciência contrapontística dos mestres “flamengos” constrói catedrais sonoras, de complexidade sem-par em qualquer época posterior. A escritura é rigorosamente “linear”, "horizontal”, isto é, as vozes procedem com independência (enquanto na música “moderna” se sucedem acordes, "colunas verticais” de sons). É essa independência das vozes que, quando coincidem eufonicamente, produz a impressão de coros angélicos. Mas como temas musicais, que dão os nomes às Missas dos compositores, servem canções populares da época: Uhomme arme, Malheur me bat, Fortuna desperata... Se la face..., canções eróticas e até obscenas. Esse “populismo” não ilude. Não se trata de arte popular. Nas cidades flamengas e francesas está em plena decomposição o corporativismo medieval. Os mestres "flamengos” não são artesãos. São cientistas da música, exercendo uma arte que só o músico profissional é capaz de executar e compreender. As incríveis artes contrapontísticas de escrever até em 36 e mais vozes independentes, de inversão e reversão de temas, em “escritura de espelho” em “passo de caranguejo”, nem sempre parecem destinadas ao ouvido; a complexidade da construção só se revela na leitura. É música que menos se dirige aos sensos do que à inteligência. É arte abstrata.

O mar que banha aquela região franco-flamenga é o canal da Mancha. Do outro lado da Mancha, do país do cânon e "Sumer is i-cumen in", veio o primeiro grande contrapontista, o inglês John Dunstable (c. 1370-1453), ao qual já se atribui maior liberdade de invenção melódica que aos mestres da Ars Nova; que os leitores julguem conforme seu motete Quam pulchra es, que foi gravado em disco. Dunstable esteve esquecido durante séculos. Mas em seu tempo passava por compositor de grande categoria e mestre dos mestres “flamengos”. O primeiro verdadeiro ‘‘flamengo” é GuiNaume Dufay (c. 1400-1474) (Ch. v. d. Borren, Guillaume Dufay, Bruxelas, 1925), natural de Chimay, que esteve na Itália, como membro da capela papal; sua música corresponde, ao Norte dos Alpes, à Renascença do Quattrocento italiano. É contemporâneo dos Van Eyck; e certas obras recentemente reeditadas, como a Missa Se la face, seriam—pode-se imaginar— a música que os anjos cantam na parte superior do altar dos Van Eyck, na catedral de St. Bavo em Gent. Mas é uma ilusão.

Aqueles quadros ainda hoje têm o mesmo brilho de cores como no tempo em que foram pintados; sua importância não é só histórica, porque são de uma infinita riqueza espiritual. A música de Dufay é "mais rica” só em comparação com a dos seus predecessores; mas dá impressão de estranho, às vezes de bizarro. O mestre já domina as regras todas; ainda não sabe aproveitá-las para comunicar-nos sua emoção religiosa; ou então, nós outros já não sabemos apreciar-lhe os modos de expressão.

O mestre de todos os “flamengos” posteriores foi Johannes Ockeghem (c. 1430-1495), (L. de Burbure, Jan Ockeghem, Antu érpia, 1853; M. Brenet, Musique et muaciens de la Vieille France, Pari», 1911; J. Plamenac, Jean Ockeghem, Paris, 1925), maestro da capela da catedral de Antuérpia e, depois, na corte do rei da França. Parece ter sido um grande professor; depois da sua morte, todos os músicos em posições de responsabilidade, na Bélgica, França e Itália, dedicaram elegias à sua memória; famosa é a Déploration d’Ockeghem, de Josquin Des Près. Elogiaram-lhe, sobretudo, a Missa cuiusvis toni, que pode ser transposta para todas as tonalidades, e o motete Deo gratias, para nada menos que 36 vozes. Foi um mestre de artifícios eruditos, de irregularidades inesperadas, de soluções novas. Sua música nos impressiona como sendo ainda mais arcaica que a dos Dunstable e Dufay, dir-se-ia mais gótica; afinal, foi ele que regia o coro naquele milagre de arquitetura gótica que é a Saint-Chapelle em Paris.

Chegamos a sentir mais vivamente com a arte de Jakob Obrecht (c. 1430-1505), regente de coro na catedral de Utrecht e, depois, na corte do Duque Ercole d’Este, em Ferrara. Sua Missa Fortuna desperata é obra que realmente lembra os Van Eyck; à arquitetura em torno do altar corresponderia seu gigantesco motete Salve crux, arbor vitae, uma catedral sonora em gótico flamboyant. Mas não convém exagerar. Toda essa música dos Dufay, Ockeghem, Obrecht só tem interesse histórico. Não poderá ser revivificada. O primeiro mestre ainda “vivo” na história da música ocidental é Josquin.

Josquin Des Près (c. 1450-1521) (Edição das Obras Completas por A . Sraijers, 1921 e seguintes; F. de Ménil, Josquin Des Près, Paris, 1899; A. Schering, Die niederlaendische Orgelmesse im Zeitalter des Josquin Dès; Près, Leipzig, 1912; O. Ursprung, "Josquin Des Près", in B ulletin de 1'Vnion Musicologique, 1926) é, na música, o representante do Quattrocento. A historiografia romântica, confundindo as diversas fases da Renascença, gostava de compara-lo a Rafaelo, a Andrea dei Sarto, a Correggio, comparações que se encontram em escritos musicológicos da primeira metade do século XIX, em Fétis e em Ambros. Mas Josquin não tem nada de italiano; sua Renascença é nórdica, a das cidades de Flandres, Gent, Bruges; região de tão intensa vida estética como a Florença e Veneza do Quattrocento, mas inspirada por mais profunda religiosidade. A propósito da Ave Maria de Josquin, a 4 vozes, não nos ocorrem Rafaelo nem Correggio, mas as virgens humildes e secretamente extáticas de Memling; o De Projundis e o sombrio e incomparavelmente poderoso Grande Miserere nos lembram os anjos pretos que, nos quadros de Roger van der Weyden, voam como grandes aves da morte em torno da Cruz erigida em Gólgota. No entanto, Josquin esteve na Itália; mas não para aprender e, sim, para ensinar.

Ali, assim como na França, foi chamado de “Princeps musicae”; sua posição, no fim do século XV, parece ter sido a de Beethoven em nosso tempo. Mas comparações dessas nunca se referem ao estilo nem sequer ao valor. Pois este último não nos é completamente acessível. Essa música, com suas requintadíssimas artes contrapontísticas, com seus artifícios audaciosos na inversão e imitação das vozes por outras vozes, com as suas complexidades que não podem ser ouvidas, mas que só se percebem na leitura, essa música nos é permanentemente estranha. Já se aventuraram hipóteses: de que parte dessas obras não estaria destinada à execução, mas ao ensino; ou então, de que só poderiam ser executadas com acompanhamento do órgão, porque sem isso, os coros ficariam desorientados, caindo na confusão. Podemos admirar infinitamente obras como a complicadíssima Missa L’Homme armé, o salmo In exitu Israel, os grandiosos motetes Praeter rerum seriem (6 vozes), Hic in sidereo e Qui habitat in adjutório (24 vozes), que parecem dizer de um outro mundo, inefável. Mas para a nossa vida musical, na igreja ou na sala de concertos, só poucas obras de Josquin ainda têm atualidade: aqueles De Profundis e Ave Marta; a Missa Pange lingua, provavelmente a obra-prima de Josquin, de beleza angélica; a gloriosa Missa Une musique de Biscaye já ressuscitada em disco (Renaissance Chorus de Nova Iorque); e o sereno Stabat Mater (5 vozes), que está definitivamente reincorporado ao repertório das grandes associações corais. São obras de complexidade algo menor, que os coros modernos podem executar em puro estilo a capela, isto é, sem qualquer apoio das vozes humanas por instrumentos; e que revelam melhor o elemento novo da arte de Josquin: sua música comunica emoção religiosa, talvez já um pouco subjetiva. Mas não exageremos. O compositor não pode nem pretende exprimir musicalmente o conteúdo todo das palavras litúrgicas; pois as muitas vozes cantam, ao mesmo tempo, textos diferentes, dos quais um é quase sempre profano; e todas as palavras ficam incompreensíveis, como devoradas pelas colossais ondas sonoras. Na verdade, as palavras não significam nada para o compositor; são apenas o fundamento da arquitetura, construída com vozes humanas. É arte abstrata.

Muitos outros “flamengos” poder-se-iam citar, entre os contemporâneos e sucessores de Josquin; Fevin, La Rue, Gombcrt, Clemens non papa, Vaet, Hollander. Mas não adiantaria. Fora do círculo limitado dos musicólogos, são apenas nomes. Pelo menos, não será esquecido o do inglês Thomas Tallis (c. 1505-1585), compositor insular que ainda cultiva o estilo de Josquin quando já o tinham abandonado no continente europeu. Mas já são palestrinianas suas imponentes Lamentationes Jeremiae. Seu niotete Spem in alium e o Miserere (40 vozes) são imensas construções góticas, pedras de toque, até hoje, para a arte de cantar a capela dos coros ingleses.



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