sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O #MANEIRISMO





O termo "maneirismo” já não tem, como antigamente, sentido pejorativo. É geralmente usado, na história das artes plásticas, para a fase intermediária entre as últimas formas renascentistas e o Barroco. É pré-barroco porque já se aproxima do meraviglioso estupendo; ainda não é barroco porque, mesmo usando recursos colossais, continua dentro de limites clássicos ou classicistas da expressividade. '‘Maneirista” é o, estilo que pretende superar-se a si mesmo, sem dispor, ainda, de recursos inteiramente novos para tanto. Daí a impressão do exagero e da auto imitação, que não excluem a possibilidade de criar obras-primas.

Um dos recursos típicos do maneirismo em música é a “policoralidade”. O flamengo Adrian Willaert (c. 1480-1562), natural de Bruges, nomeado em 1527 regente do coro da basílica de San Marco em Veneza, observara as possibilidades sonoras de fazer alternar os coros colocados nos dois balcões superiores de que aquela basílica dispõe. Em motetes como Laudate pueri e Confitebor experimentou essa “conquista do espaço musical”, definição que lembra o caráter pré-barroco da iniciativa.

Essa “conquista” é obra de dois discípulos venezianos do mestre nórdico: Andrea Gabrieli (c. 1510-1586) e seu sobrinho Giovanni Gabrieli (1557-1612), (Edição das Sacrae Symphoniae, por P. Hindemith, Mainz, 1961; C. Winterfeld, Johannes Gabrieli und sein Zeilalter, 2 vols. Berlim, 1834 (Obra antiga, mas ainda não superada.);  L. Torchi, UArte Musicale in Italia, vols. 1I-III, 2.a ed., T urim, 1927), ambos organistas em San Marco.

A música de Andréa, em motetes como Deus misereatur e Benedicam Domino, já é de um colorido sonoro que lembra imediatamente a pintura veneziana contemporânea, Tiziano sobretudo. Giovanni, que foi o gênio, acrescenta a capacidade de expressão dramática. Nas suas Sacrae Symphoniae, de 1597, há obras-primas em que a alternância e reunião dos coros produz efeitos sonoros verdadeiramente assombrosos: assim o Miserere (6 vozes), O Domine Jesus Christe (8 vozes), Jubilate Deo (8 vozes), Domine, exaudi orationem meam (10 vozes), Ascendit Deus in jubilo (16 vozes) e o famoso Benedictus (para 8 coros). Este último e poucas outras obras, menores, pertencem ao repertório das associações corais. Mas, ainda mais que com respeito a Palestrina, cabe lembrar que só fazem o devido efeito na igreja e mesmo só em igrejas que dispõem das condições acústicas de San Marco. Por outro lado, só pela leitura, pelo estudo atento, revelam-se as grandes artes polifônicas de Giovanni Gabrieli, já muito diferentes do estilo palestriniano, pela distribuição sábia das vozes empregadas assim como um sinfonista moderno distribui os instrumentos da orquestra. Tudo isso serve a um fim que não tivera para Palestrina a mesma importância: serve à arte da interpretação expressiva e até dramática dos textos sacros. Giovanni Gabrieli já é um mestre pré-barroco. Antecipa fases muito posteriores da evolução da música. Algumas daquelas obras podem ser executadas ad libitum, a capela ou com acompanhamento do órgão; mais outras parecem exigir o acompanhamento por instrumentos de sopro. Enfim, esses instrumentos tornam-se independentes.

Os musicólogos têm dedicado estudo intenso a uma obra como a Sonata Piano e Forte, de Giovanni Gabrieli, obra puramente instrumental, na qual os dois coros de vozes humanas são substituídos por dois coros de trombones. —No seu tempo, Giovanni Gabrieli foi certamente um inovador revolucionário. Quando, em 1956, Igor Stravinsky regeu na basílica de San Marco, em Veneza, seu Canticum Sacrum ad honorem Sancti Marci nominis, a execução da obra moderna foi precedida pela de alguns coros de Andrea e Giovanni Gabrieli.

A música policoral ainda pertence à época da Contra-Reforma: seu lugar é nas igrejas vastas do estilo jesuítico, em que a liturgia, ajudada por todas as outras artes, pretende impressionar os fiéis. A mais impressionante dessas obras é devida a Orazio Benevoli (1602-1672): a Missa Solene para a inauguração do novo domo de Salzburgo (1628). Essa obra estava, como tantas outras da época, destinada para ser executada só uma vez, em determinada ocasião; dormiu, depois, durante quase três séculos, esquecida nos arquivos da Cúria Metropolitana de Salzburgo; quando o grande musicólogo vienense Guido Adler a redescobriu e editou em 1903 (Monumentos da Música na Áustria, vol. X), nada foi mais natural do que pensar nas missas sinfônicas de Bruckner e nas colossais sinfonias corais de Mahler: pois a Missa de Benevoli é escrita para 8 solistas, 8 coros, orquestra de 34 vozes instrumentais e 2 órgãos. As opiniões sobre o valor musical dessa obra são divididas: alguns censuram a extrema simplicidade dos temas (mas com temas mais complexos ninguém chegaria a dominar a massa sonora, 52 vezes dividida); outros (entre eles o próprio Guido Adler) admiram a força impressionante de trechos como “Unam sanctam”. Os contemporâneos, de que possuímos testemunhos da execução de 1628, consideravam Benevoli como o sucessor e superador de Palestrina, porque teria “conquistado novos espaços sonoros". A expressão tem sabor barroco; mas a argumentação antes lembra as definições do maneirismo, cujo último representante, escrevendo para 48 vozes e mais, em época de plena homofonia opcrística, será outrora famoso Giuseppe Ottavio Pitoni (1657-1743).

No resto, é preciso considerar que o polifonismo extremo de um Benevoli só é, muitas vezes, aparente: não pode (nem quer) evitar que os coros (os vocais e os instrumentais) apenas alternem, ou então, que certas vozes dobrem ou redobrem outras. Obras dessa natureza já não teriam sido possíveis a capela, porque os coros cairiam em confusões inextricáveis; mas a necessidade do acompanhamento por acordes favorece a maneira de escrever “verticalmente”, harmonicamente. A polifonia policoral passou por um processo de autodestruição; o resultado será o acompanhamento instrumental de uma vez só: a homofonia.

Ao mesmo resultado levou a evolução do madrigal. Nos madrigais sacros de Palestrina, o desejo de expressividade já produziu cromatismos inesperados e dissonâncias. Assim também, nos de Marenzio. Um caso extremo, comparavel à “policoralidade” extrema de Benevoli, é Cario Gesualdo, príncipe de Venosa (c. 1560-1614) (C. e Ph. Heseltme, Cario Gesualdo, Londres, 1926). Há séculos, esse nobre diletante é um autor preferido dos que procuram na história “histórias interessantes”. Pois teve uma vida romântica; assassinou sua esposa infiel Maria d’Avalos e o amante dela; e só depois de longos anos de penitência, a angústia intima levou-o a dedicar-se à arte. Entre seus madrigais, publicados em vários volumes entre 1594 e 1611, há peças que não podem deixar de assombrar os musicólogos. Moro lasso e Resta di darmi noia, que, hoje em dia, se voltou a cantar, têm sabor romântico. Em outros madrigais, o cromatismo extremado lembra Tristão e Isolda. Em mais outros, já não é possível reconhecer a tonalidade, como se fossem obras da fase atonal de Schoenberg.O sistema tonal da época da polifonia vocal está em plena dissolução: está às portas daquele caos com que se inicia, na música, a época barroca.


Gesualdo foi “um. embriagado de sons novos” como Debussy. Sua modernidade parece inesgotável. Stravinsky transcreveu-lhe para pequena orquestra de câmara os três madrigais Ascingate Ibegh occhi, Ma tu, cagion di quella, e Beltà poi cke fassenti, como Monumentum pro Gesualdo di Venose (1960). Execuções recentes de certos madrigais nunca deixaram de surpreender o público. Mas nem isto pode levar-nos a ver nesse personagem romântico um gênio—como Aldous Huxley o fez num ensaio—o criador da música moderna. Só foi o São João Batista de um maior: Monteverde.



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