sexta-feira, 27 de outubro de 2017

A #HOMOFONIA NA ÓPERA E NA IGREJA






Os florentinos tinham inventado a ópera para aperfeiçoar a arte dramática. Em vez disso surgiu um gênero que os franceses e os italianos costumam, até hoje, chamar de “lírico”. Arte lírica no teatro é uma contradictio in adjecto, um absurdo. No entanto, é um fato histórico; e de vida tenacíssima.

O berço dessa nova ópera foi Nápoles ( G. Tintori, L ‘Opera Napoletane, Milão, 1958). Seu criador é Alessandro Scarlatti (1659-1725) (E. Dent, Alessandro Scarlatti. His Life and Work, Londres, 1905; Cli. van den Borren, Alessandro Scarlatti et Vesthétique de 1'opéra napolilain, Bruxelas, 1921). Não será injusto chamá-lo de grande oportunista. Pois sabia escrever e escreveu em vários estilos, conforme a oportunidade o exigiu. Certa parte das suas numerosas obras de música sacra está no estilo “antigo”, inclusive motetes a capela e uma Missa bem palestriniana. Mas toda a beleza lírica das suas óperas também se encontra em seu Stabat Mater, recentemente revivificado por uma gravação em disco, e nos seus Oratórios, que são propriamente óperas de enredo bíblico, destinados para execução durante a Quaresma, quando o uso, nos países católicos, não permitia a representação de óperas profanas. Há, entre esses Oratórios, obras e trechos admiráveis. Em Sedecia (1706), a orquestra de Lully está largamente superada, pelo brilho dos instrumentos de sopro. Em La Vergine addolorata (1717) há certas árias a propósito das quais já foi lembrado o nome de Bach.
Mas são obras teatrais. Também já são introduzidas por "sinfonias", isto é, aberturas. O tipo de “abertura italiana”, devido a Alessandro Scarlatti, é, porém, o contrário da “abertura francesa” de Lully: em vez de um trecho rápido entre dois trechos lentos, escreve Scarlatti, um trecho lento entre dois trechos rápidos: é o germe da sinfonia.

Scarlatti escreveu aberturas assim para suas numerosas óperas, representadas entre 1690 (Rosaura) e 1721 (Griselda); todas elas famosas durante a vida do compositor; e logo depois esquecidas.
Os compositores do século XVIII não esperavam, aliás, outro destino das suas obras; escreveram para determinada oportunidade, mas não para ficar no repertório. No caso de Alessandro Scarlaiti, a posteridade ratificou aquele julgamento: todas as óperas desse grande mestre foram excluídas do corpus da música que vive. A própria natureza e construção daquelas obras é o motivo do esquecimento. Alessandro Scarlatti é o criador da ária "melodiosa", da ária da qual o ouvinte guarda na memória a melodia, embora não pudesse cantá-la: as dificuldades do bel canto reservaram isto aos cantores profissionais. Depois da representação, nada fica senão a recordação daquelas pièces de rèsistance, das grandes árias de amor ou de desespero, das árias de lamento ou de ombra (invocação dos mortos); uma dessas árias de Alessandro Scarlatti, "Cara tomba” (da ópera Mitridate, de 1707), impressionou tanto o grande Bach que a copiou para seu caderno de notas. E Mitridate realmente é uma obra-prima, também pela expressão dramática nos recitativos; ressurgiu vitoriosamente no Festival de Bordéus em 1962. Mas é uma exceção; em geral só sobrevivem árias isoladas. Uma ou outra ainda pode ser ouvida, hoje em dia, em concerto, como aria antica. Os libretos não têm significação dramática; não passam de andaimes de que as vozes dos cantores se servem para subir ao céu do bel canto. A grande ária é cantada justamente no momento em que a ação dramática para; ou antes, a ação fica interrompida, para o cantor recitar a grande ária, que não tem função senão a de agradar aos ouvidos.
A ópera napolitana é arte essencialmente não-dramática, lírica. E Alessandro Scarlatti revela o lado mais forte do seu gênio nas “cantatas de câmara”, pequenas obras líricas, das quais Lontananza crudele é, até hoje, muito conhecida e Su le sponde dei Tebro merece sê-lo.

Pois gênio era. Sua importância histórica é de primeira ordem, inclusive para a solução de um dos mais graves problemas da música barroca: de maneira assistemática, intuitiva, Scarlatti já se mantém dentro dos limites das tonalidades modernas e da separação rigorosa entre tom maior e tom menor. Antecipa os sistemas do Cravo bem Temperado, de Bach, e do Traité â'harmonie, de Rameau. Mas de sua Obra, assim como da dos seus discípulos, só sobrevivem os pequenos trechos que os editores italianos editaram e editam como Arie antiche, para o uso no ensino e no concerto.

Ninguém teria, então, previsto que estava reservado destino melhor ao uso do mesmo estilo operístico na música sacra e, por outro lado, na opera buffa ou cômica. Naquela, será introduzido por Durante. Aos dois gêneros está ligado o nome do seu discípulo, Giovanni Battista Pergolese (1710-1736) (Edição das Obras p o r F. Caffarelli, 1939 e seguintes. G. Radiciotti, Giovanni Battista Pergolese, 2.a ed„ Roma, 1931).

A primeira opera buffa foi o Trionfo d‘onore (1718), de Alessandro Scarlatti. Mas ainda é “cômica” no sentido da Comedia de capa y espada espanhola. Só a Serva padrona de Pergolese é ópera autenticamente italiana e vivamente cômica. Mas seu autor foi homem triste.

A lenda tem desfigurado, incrivelmente, a biografia de Pergolese. Sua morte prematura, com 26 anos de idade, teria sido causada por veneno. Por quê? Obra de um rival ciumento, porque o jovem maestro, belo como um anjo, teria sido conquistador terrível. Outros contemporâneos afirmam que teria sido repulsivamente feio e aleijado. Não é possível esclarecer essas lendas todas; nem é necessário. Sabemos que Pergolese foi discípulo de Durante no Conservatorio dei Poveri em Nápoles; que suas primeiras obras tinham pouco sucesso; que também foi friamente recebida sua opera seria II prigioner superbo (1733); que o compositor tinha escrito, conforme uso napolitano, umas cenas cômicas para serem representadas durante os intervalos daquela ‘‘grande" ópera; e que esse intermezzo teve vivo sucesso: foi La Serva padrona. Depois: que escreveu para a irmandade dos Cavalieri delia Vergine dc’dolori o Stabat Mater; que, nesse ano de 1736, já estava gravemente tuberculoso, retirando-se para um convento em Pozzuoli, onde morreu, logo depois de ter escrito as últimas notas do seu Salve Regina.

Esse Salve Regina, que foi recentemente gravado em disco, é música quase fúnebre, de devoção elegíaca, para lazzaroni napolitanos e suas mulheres e filhos, gente esfarrapada e no entanto feliz em sua fé simples. Uma grande elegia religiosa, em estilo mediterrâneo, também é o célebre Stabat Mater. Obra até hoje geralmente conhecida e muito executada. E com razão. Pode parecer-nos sentimental, de pouca profundidade emocional. Mas é de intensa inspiração lírica. Certo trecho, o "Quando corpus morietur,fac ut animae donetur Paradisi gloria”, é de beleza mozartiana. O Stabat de Pergolese deve sua fama aos músicos e musicólogos alemães do século XVIII, muito sentimentais e cheios de saudade do Sul mediterrâneo que imaginavam como um paraíso de beleza e inocência: assim elogiaram a obra os Johann Adam Miller, Wieland, Reichardt. Mas também houve opinião diferente. Dois conhecedores como Forkel e Rochlitz deram a preferência ao SLabat Mater (1707) de Emmanuele de A storga (1680-1757) (H. Volkmann, Emmanuele d'Astorga, 2 vols., Leipzig, 1911-1919), de maior expressividade dramática e superior arte polifônica. No Stabat de Pergolese censuraram a "leviandade” melódica de um trecho como "Inflammatus et accensus”, que lembra irresistivelmente a verve rítmica da ópera-cômica.

Pois o autor do Stabat napolitano também é, e em primeira linha, o de La Serva padrona (1733). É uma pequenina obra-prima, com apenas dois papéis: a criada graciosa e astuta que, com truques inofensivos e alegres, conquista o amor do seu patrão. E é, pela primeira vez, uma ópera baseada no folclore musical e nos costumes da Itália viva. Muitos anos depois da morte de Pergolese, em 1752, uma companhia italiana representou a Serva padrona em Paris, com imenso sucesso; desde 1754, uma tradução, La Servante maítresse, ficou incorporada ao repertório francês. Continua no repertório, até hoje. E tem tido prole numerosíssima: é o modelo de toda a ópera cômica italiana, francesa e espanhola.

O estilo em que se podiam escrever igualmente música sacra e ópera cômica, também serviu bem para insuflar algo de “cantabilidade” napolitana aos instrumentos: as trio-sonatas (1731) de: Pergolese antecipam algumas qualidades características da música de Haydn.

Pergolese já não é chamado, hoje em dia, de “Mozart italiano". Mas foi, certamente, um gênio precursor.

De toda a música sacra italiana daquela época só o Stabat Mater de Pergolese continua vivo, graças à colaboração de várias circunstâncias casuais. O resto está esquecido assim como a opera seria; e pelo mesmo motivo. Pois é uma música operística que usa textos sagrados como libretos. O estilo é, nos dois gêneros, idêntico; a escritura, a interdependência constante de solistas, coro e orquestra, lembra-nos o estilo pouco edificante da música sacra do século XIX. Mas esse fato basta para demonstrar a grande importância histórica do gênero, cuja evolução não merece o desprezo. Também pode haver, entre aquelas obras, uma ou outra surpresa.

A música sacra italiana do século XVIII já foi, por alguns historiadores, comparada ao estilo jesuítico na arquitetura; o que é evidente anacronismo. Mas existe uma relação dessas nas origens.

Giacomo Carissimi (1605-1674) foi regente do coro do Collegium Germanicum, dos jesuítas, em Roma. Seus Oratórios, pequenas obras dramáticas sobre textos bíblicos para serem cantadas sem cenário, enquadram-se entre os instrumentos propagandísticos da Companhia de Jesus, assim como o teatro escolar dos padres. Para conseguir o efeito almejado, o compositor usou o estilo musical de maior aceitação no momento: não propriamente o da ópera monteverdiana, mas, em todo caso, um estilo homófono e melódico, limitando razoavelmente o uso da polifonia nos coros. Dos 12 Oratórios de Carissimi, Jephte (1650) é hoje conhecido por uma gravação em disco. É uma obra agradável, edificante, elevada e vivamente dramática. Mas não há motivo para falar, como já se fez, em “Handel do século XVII”.

O uso de executar oratórios durante a Quaresma, quando era proibida a representação de óperas profanas, tem contribuído para fomentar a produção de obras desse gênero e para tomá-lo cada vez mais operístico. Este último adjetivo não tem sentido pejorativo. Afinal, um Oratório não é executado durante o culto; não é obra litúrgica; e, sendo semidramática, não precisa renunciar aos efeitos teatrais. Um oratório grandiosamente dramático é o San Giovanni Battista (1675), de Alessandro Stradella (c. 1645-1682); o compositor foi personagem romântico, cuja vida— raptou a amante de um aristocrata e foi assassinado pelos esbirros— tem fornecido o enredo de uma ópera de Flotow. Stradella foi natureza de precursor: escreveu as primeiras cantatas de câmara e os primeiros concerti grossi. Um concerto grosso também serve, algo estranhamente, de abertura ao San Giovanni Battista, obra impressionante que foi exumada, em anos recentes, e executada na Itália com notável sucesso. Entre os outros oratórios da época talvez mereça uma iniciativa, nesse sentido, a Gerusalemme liberata, de Cario Pallavicino (1630-1688); ou o Davidde (1724), de Francesco Conti (1682-1732), que antecipa artes corais de Handel.

A posição central entre os compositores sacros da época pertence a Agostino Steffani (1655-1728), (Obras escolhidas, editadas por A. Einstein, A. Sandberger e H. Rienm yOenkmaeler der Tonkunst in B ayem, vols. V I/2 , XI/2 , XII/2); A. Eiiutein, "Agostino Steffani", in Ktrchenmusikalisches Jahrbuch, XXIII, 1910), embora, a rigor, só uma obra dêle se enquadre na evolução do gênero: é seu Stabat Mater, de 1724, instrumentado de tal modo que as vozes dos solistas, o coro e a orquestra de cordas sucessivamente alternam e se acompanham: é o estilo “concertante”, o estilo característico de toda a música sacra do século XVIII, inclusive a de Haydn e Mozart. É uma obra belíssima. Steffani foi nobre prelado veneziano que serviu à Santa Sé como diplomata na Alemanha, em Munique e depois em Hanôver, onde frequentava a casa do grande filosofo Leibniz e teve oportunidade de facilitar, generosamente, os inícios da carreira inglesa de Handel. Mas esse prelado da época barroca também já é, em horas mais livres, um abbé no sentido do Rococó: escreveu um volume de deliciosos Duetti di camara, diálogos eróticos musicados, em estilo homófono, naturalmente, mas aproveitando o acompanhamento para revelar umas finas artes polifônicas. Duetos como T u m’aspetti, Dir che giovi, Che volete, Occhi perchè, Inquieto mio cor, Siete il piú bizarro, foram o encanto e têm mesmo todo o encanto dos tempos de Watteau; ainda no começo do século XIX, o grande romântico E. T. Hoffmann elogiou efusivamente esses duetos que, já existindo em reedição moderna (Monumentos da Música na Baviera, vols. VI, XI, XII), esperam ressurreição gloriosa.

Famosíssimo também foi, durante o século XVIII inteiro e entre os românticos, o Crucifixus (6 vozes) do veneziano Antonio Lotti (c. 1667-1740), que começa com um forte grito de horror do coro, "como um tiro de pistola na igreja”. Mais litúrgico é o Miserere em sol menor, cheio de cromatismos sombrios. Mas Lotti também escreveu óperas; e uma ária sua, Pur dicesli, é uma daquelas arie antiche que sobrevivem, indestrutivelmente, no repertório dos cantores de concerto. O mais sério entre esses compositores é Antonio Caldara (1670-1736), que foi vice-regente na corte de Viena. É mesmo um músico notável. Seu Magnificat em ré maior, com orquestra, existe em cópia da mão de Johann Sebastian Bach; grande testemunha. Mas não são menos importantes o Te Deum para 2 coros, e uma obra de complexa estrutura polifônica, o Crucifixus para 16 vozes. De alta categoria também é o Oratório Morte e sepoltura di Cristo (1724). Caldara, que estêve esquecido ao ponto de seu nome não figurar em grandes enciclopédias da música, aparece hoje em dia novamente no programa de festivais de música sacra, em Salzburgo e Perúsia (Obras escolhidas em: Denkmaeler der Tonkunst in Oesterreich, vols. XXVI, LXXV).

A sincronização da música sacra com o estilo operístico de Alessandro Scarlatti é obra de Francesco Durante (1684-1755): dois Magnificat seus, em si bemol maior e em ré maior, e uma Missa de Réquiem, de beleza suave e etérea, ainda podem ser ouvidos em concertos alemães (cada vez mais raramente), e em igrejas de Nápoles. Discípulo seu foi Pergolese. Seu estilo já é o mesmo da música sacra de Haydn e Mozart.

A vitória desse estilo não foi instantânea; e houve resistência séria. Em Viena, o regente do coro da catedral de Sankt Stephan, Johann Joseph Fux (1660-1741), manteve com energia o prestígio da música a capela, polifônica e contrapontística sobre a qual escreveu famoso tratado, o Gradus ad Parnassum. Sua Missa Canônica para 4 vozes (1718) é, pela última vez, ura modelo de estilo palestriniano; admiração excessiva conferiu-lhe o título de ‘‘Palestrina austríaco”.

Menos exclusivo foi Leonardo Leo (1694-1744). Seus contemporâneos e os críticos musicais do romantismo festejaram-no por causa das suas obras a capela, sobretudo um famoso Miserere para 8 vozes. A posteridade chegou a apreciar justamente o lado oposto das suas atividades: num recente festival de música sacra em Perúsia foi executado, pela primeira vez desde 1732, o Oratório La morte d’Abele, que reúne estilo polifônico e expressão dramática, às vezes teatral. Os coros no fim das duas partes da obra, “Oh di superbia figlia” e "Parla Vestinto Abele", são solenes e comoventes ao mesmo tempo, com um pouco de sentimentalismo que lembra a proximidade da época pré-romântica.

O mais conspícuo entre esses retrógrados ou conservadores é o aristocrata veneziano Benedettò Marcello (1686-1739) (A. d’Angeli, Benedetto Marcello, vita e opera, Milão, 1940), um dos nomes m ais famosos na história da música. Num panfleto que fez sensação, Il teatro alia moda (1722), denunciou a ópera de tipo scarlattiano como mera exibição de vaidades dos compositores e cantores, sem valor musical e moral, sem apelo aos sentimentos humanos; Marcello já levanta a pergunta retórica que mais tarde os philosophes franceses dirigirão aos músicos: “Mitsique, qu‘este e que tu me veux?” E prefere a música sacra que penetra nas profundidades da alma. Mais tarde, Marcello sofreu um acidente misterioso (numa igreja veneziana caiu, por acaso, num túmulo aberto) que o levou a abandonar todas as veleidades artísticas para dedicar o resto da sua vida a exercícios religiosos. A invasão da música sacra pelo estilo operístico encheu-o de indignação. A essa arte sacrílega opôs os dois volumes da sua famosa obra Estro poetico-armonico (1723-1727): são 50 salmos, na parafrase italiana (um pouco em dialeto vêneto) de Lionardo Giustiniani, postos em música para 1 a 4 vozes com acompanhamento de violoncelo e baixo-contínuo, alguns a capela. O estilo é o de declamação justa das palavras; para acertar a “verdade religiosa” do texto, Marcello tinha assiduamente frequentado a sinagoga de Veneza, aproveitando melodias do canto sinagogal, o que dá à sua obra um estranho sabor arcaico; por outro lado, arcaísmos tão artificiais não deixam de produzir involuntariamente efeitos operísticos.

Essa mistura de religiosidade e ostentação já lembrou a um crítico os suntuosos altares de estilo jesuítico em igrejas decaídas e meio arruinadas de Veneza. Alguns desses salmos sempre foram considerados como obras-primas (sobretudo os n.ºs 1, 22, 25, e outros). Os críticos musicais da época romântica, como E. T. A. Hoffmann e Thibaut, e ainda Mendelssohn, sentiram a mais viva admiração pelo Estro poetico-armonico, que se lhes afigurava música “antiga”; o próprio Verdi falou, depois de ouvi-lo, em "nntica arte italiana”. Somos, hoje, um pouco mais céticos. Mas é preciso advertir que os arranjos modernos para solistas e coro, por Frazzi e por Gerelli, não dão ideia justa do original e de sua religiosidade mais íntima, por assim dizer camerística.

Conforme tudo isso, Marcello dá impressão de reacionário. Mas não foi. Foi, em primeira linha, aristocrata e homem do mundo, talvez cheio de inveja dos sucessos dos músicos profissionais. Competiu com êles na ópera Arianrta (1728), que teve na época um sucesso de estima; a representação em Veneza, em 1956, decepcionou.


Talvez seja Marcello pouco mais que um nome famoso? Ou talvez menos que um nome? Obra de valor permanente é um Concerto para oboé e orquestra de câmara, em ré menor, famosíssimo durante o século XVIII, transcrito para cravo pelo próprio Bach e pertencendo até hoje ao repertório camerístico; Schering e outros musicólogos já atribuíram esse concerto a Marcello; mas é obra anônima.


quinta-feira, 26 de outubro de 2017

#FORMAS DO BARROCO




Mestres como Monteverde, Schuetz e Purcell, certamente de primeira ordem, não deixaram à posteridade aquele grande número de obras-primas que deles se podia esperar. Foram experimentadores geniais que só acertaram ocasionalmente; a massa da sua produção está, para nós, perdida. Dos contemporâneos menores, quase nada sobrevive.

O século XVII não chegou a resolver os dois problemas principais que a reforma monteverdiana lhe legara. A música da época da polifonia vocal possuía rigoroso esquema tonal, herdado da Idade Média, e formas certas da construção arquitetônica. A homofonia e o baixo-contínuo não chegaram a substituí-las. Nem foi possível pôr em ordem esse novo mundo caótico das dissonâncias e dos cromatismos.

O primeiro desses dois problemas, o do sistema tonal, não será resolvido antes do início do século XVIII. Quanto ao problema das formas, começam, já antes, a esboçar-se várias soluções.

A ópera renunciou a uma parte do terreno conquistado: à forte expressão dramática, que ameaçava destruir as bienséances do mundo aristocrático. O compositor limita-se a interromper a ação dramática, convencionalmente elaborada por peças vocais brilhantes, as árias, nas quais reside principalmente o valor musical das obras. É o tipo de ópera de Alessandro Scarlatti e Handel. A ornamentação das linhas melódicas cantadas serve, no início, para salientar o caráter rígido, dir-se-ia monárquico e quase sacro, dessa música teatral. Depois, começa a prevalecer a ornamentação ao gosto do Rococó.

Essa forma de música vocal, a ária ornamentada, também terá forte influência na música instrumental barroca. Mas esta já pertence principalmente à primeira metade do século XVIII, isto é, à época da análise matemática, cujo espírito informa novas formas instrumentais. Deve-se à ópera e aos operistas o aperfeiçoamento da Suíte: ela foi, no tempo de Lully, mera acumulação de danças estilizadas; agora, no tempo de Couperin e Bach, a Suíte parecer-se-á com verdadeiros panoramas de vida contemporânea, refletida em música: a corte de Versalhes e o mundo de pastores de porcelana de Sèvres, a vida devota, submissa e alegre dos burgueses alemães e a dança dos camponeses ao ar livre e os cortejos cerimoniosos que inauguram as sessões do Parlamento inglês.

Também é transplantado para a música instrumental o esquema da ária operística: esta começa com um trecho orquestral (o “Ritornello"); depois, o cantor declama a ária; enfim, o "Ritornello” é repetido. Esse esquema, ABA, dá a planta arquitetônica do Concerto Grosso: A, os tutti, a orquestra; B, a exibição dos solistas; A, novamente os tutti: Mas esse esquema é logo—com espírito matemático—analiticamente desenvolvido, pela distribuição do tema entre várias vozes e pelas suas modificações: são as formas da Fuga e da Variação, que nasceram no órgão. Com elas volta a polifonia para a música instrumental. E não só para a música instrumental.

Pois o emprego dessas formas polifônicas para o canto em coro e a mistura desses coros com árias conforme o esquema ABA, dá os dois gêneros novos da música barroca, para solistas, coro e orquestra: a Cantata e o Oratório.


O caminho de evolução da música barroca está assim indicado: na ópera, a redução ao lirismo homófono; na música instrumental e sacra, a renascença da polifonia abandonada.


quarta-feira, 25 de outubro de 2017

BARROCO NA #ALEMANHA, FRANÇA, INGLATERRA





Cavalli esteve em Munique. Cesti esteve em Viena. É o começo da hegemonia musical italiana nos paises ao Norte dos Alpes. Mais importante, foi, porém, no início, a migração de artistas nórdicos para o Sul, para aprender em Veneza a nova arte dos Gabrieli e de Monteverde.

O holandês Jan Pieterzoon Swkelinck (1562-1621), organista da Oude Kerk (Igreja Velha) em Amsterdã, não esteve, provavelmente, na Itália. Mas, apesar de ser austero calvinista nórdico, adotou os processos sonoros de Andrea e Giovanni Gabrieli: a essa qualidade devem alguns dos seus raotetes, Regina coeli, Hodie Christus natus est, a sobrevivência. O quarto centenário do seu nascimento forneceu oportunidade para demonstrar a vitalidade dos seus salmos (1604-1621) e de certas obras o cravo (variações sobre Mein junges Leben hate in End). Discípulo de Andrea Gabrieli, em Veneza, foi Hans Leo H asler (ou Hassler) (1564-1612), depois organista em Nuremberga e Ulm. Seus Salmos de 1607 são elaborados à maneira veneziana; mas o coração do homem pertencia à fé luterana: inventou, com veia de folclorista, as melodias de vários corais, inclusive o comovente "O Ilaupt voll Blut und Wunden” (“O Rosto Cheio de Sangue e Feridas”) que todo mundo conhece da Paixão de São Mateus na qual Bacli o inseriu.

A música instrumental de Giovanni Gabrieli foi desenvolvida por Johann Hermann Schein (1586-1630), que foi em 1616 nomeado para um cargo destinado a grande futuro: Kantor, isto é, diretor de música da igreja de São Tomás em Leipzig. Schein foi um dos primeiros que teve a ideia de reunir, em uma forma de pequeno tamanho, várias danças da época, estilizando-as: Sarabande, Gigue, Gavotte, Bourrée, Minueto, Allemande, Pavane, etc. Uma obra dessas, destinada a ser executada durante um banquete na corte ou no paço 'municipal, chamava-se Suíte. Schein reuniu no Banquetto musicale (1617) muitas suítes, de técnica instrumental bastante avançada e de sabor folclórico; alguns críticos já acreditam reconhecer nele a influência de Monteverde.

Discípulo mesmo de Monteverde foi Heinrich Schuetz ( 1585-1672) (Edição das Obras por Ph. e H. Spitta e A. Schering, 19 vols., 1885-1927; l’h. Spitta, Heinrich Schuetz, Leben u n d Werke, Berlim, 1894; A. Pirro, Heinrich Schuetz, Paris, 1913; A. Einstein, Heinrich Schuetz, Kasscl, 1928; H. J. Moaer, Heinrich Schuetz, sein Leben u n d seine Werke, Kassel, 1936), talvez o maior gênio da música propriamente barroca.

Foi homem grande e forte como um gigante, de vasta cultura erudita e ferrenha fé luterana; não o quebraram as tempestades da época. Tinha estudado Direito e outras ciências antes de fazer a viagem para Veneza onde ainda chegou a ouvir Giovanni Gabrieli. A influência veneziana é evidente nos seus Salmos de Davi (1619), para dois ou mais coros, mas o espirito é outro: é o da devoção alemã. Em 1628 fez, pela segunda vez, a viagem para Veneza, tomando-se discípulo de Monteverde. Sua Daphne, a primeira ópera alemã, está infelizmente perdida. Regente em Dresden, escreveu as três coleções de Symphoniae sacrae (1629, 1647, 1650), superiores a tudo que, em música sacra, nos deram os dois Gabrieli e o próprio Monteverde: pela expressividade dramática da melodia cantada, que no entanto nunca se desvia para o terreno da ópera, sempre guardando a dignidade dos textos bíblicos; e pelo brilho quase mágico do acompanhamento orquestral.

Nem todas aquelas obras são de valor igual. O grande salmo In te. Domine, speravi (1629); a grandiosa lamentação Fili mi, Absalon (1629); a emoção intensa de Saul, warum verfolgst du mich? (Saulo, por que me PerseguesT) (1650); e o sereno Hino de Simeão, Nunc, Domine, dimiltis servurn tuum in Pace (1647): eis os frutos maduros da música sacra veneziana, mas saturadas de devoção luterana, mais pessoal. De inspiração diferente é o Magnificat (1647), de delicioso sabor folclórico alemão, uma antecipação da arte de Bach.

Como a maior obra de Schuetz é considerada, por alguns, a Auferstehungshistorie (História da Ressurreição), (1623), ainda fortemente monteverdiana; declamação dramática, um pouco monótona, do texto evangélico, interrompida por coros de força assombrosa. Outros preferem Die sieben Worte am Kreuz (As Sete Palavras na Cruz, 1645): é melhor realizada a síntese entre o estilo da ópera veneziana e as exigências íntimas da devoção luterana.

Os horrores da Guerra dos Trinta Anos obrigaram o mestre a fugir até a Dinamarca e a levar, depois, uma vida nômade, caminhando de cidade para cidade. Só quando velho voltou para Dresden. Suas últimas obras são, entre 1665 e 1666, a Paixão Segundo São João e a Paixão Segundo São Mateus, obras de estilo deliberadamente arcaico, apesar da dramaticidade dos recitativos e coros; são escritas a capela, sem acompanhamento, como se o velho quisesse expiar pecados e castigos merecidos.

Em tempos melhores, Schuetz talvez não fosse muito inferior a Bach; mas o adjetivo “melhores” não alude só aos horrores de guerra. Schuetz nasceu e viveu numa época de experiências e experimentos. Quando acertou, acertou melhor que Monteverde. Mas a maior parte das suas obras, mais que as ao veneziano, só têm importância histórica. Em sua grandeza há algo de arcaico, de inacessível, como de uma grande raça extinta. Não voltou, com sua Obra total, a fazer parte da música moderna.

Entre os italianos que emigraram para o Norte, o maior papel histórico estava destinado ao florentino Giovanni Battista Lulli, que na França chegou a chamar-se Jean-Baptiste Lully (1632-I687) (Edições das Obras por H. Pn mières, Paris, 1950 e seguintes; I. de la Laurencie, Les créateurs de 1'opéra français. Paris, 1921; E. Borrei, Jean-Baptiste Lully: le Cadre, la Vie, la Personnalité, le Rayonnement, les Oeuvres, Paris, 1949).

Começou sua carreira vertiginosa como bailarino e palhaço. Chegou a obter de Luís XIV um privilégio real que o instituiu, praticamente, como ditador da música na França, relegando pura o ostracismo todos os seus competidores de origem francesa. I.ully não foi, porém, um invasor estrangeiro, ocupando o país. É um caso assombroso de mudança de nacionalidade, lembrando o polonês Korzeniowsky, transformado em romancista inglês Conrad. Pois Lully é mais francês que todos os franceses. Não esqueceu, naturalmente, suas origens italianas. Ainda em tempos muito posteriores escreveu um grandioso Miserere, no estilo de Monteverde. Também empregou os recursos e princípios do grande veneziano para criar a ópera francesa. Mas já são obras tipicamente francesas, só possíveis no ambiente de Luís XIV e da tragédia de Comeille (mais do que da de Racine). É como se a música revelasse a alma barroca dentro do classicismo oficial dessa época na França. Helmut Hatzfeld, em seus trabalhos sobre a substância barroca do grand siècle francês, poderia ter citado a arte de Lully.

As óperas mais admiradas de Lully foram Thésée (1675), Atys ( 1675) e Proserpine ( 1680). Apesar de tudo que querem dizer os musicólogos, não são obras vivas ou que poderiam, um dia, ressurgir para voltar ao repertório. Mas sua importância histórica é grande. Não acreditamos na tese que encontra no recitativo de Lully uma antecipação da arte de Gluck. O que nos interessa, naquelas obras, é o acompanhamento instrumental. Monteverde tinha empregado uma massa imensa de cordas, a "grande guitarra”, acumulação inorgânica de instrumentos. Lully organizou o bloco, mais modesto e mais homogêneo, dos “24 violons du Roi”-, acrescentou um pequeno grupo de instrumentos de sopro; já é a verdadeira orquestra. Empregou-a para fazer executar, antes das óperas, uma sinfonie, isto é, uma abertura: a forma chamada de otiverture française. Composta de uma introdução lentamente majestosa, um movimento rápido e um desfecho lento. Essa forma inventada por Lully será da maior importância na evolução dos gêneros "Abertura” e “Sinfonia". E não foi o único gênero instrumental cultivado por Lully: a forte participação de danças na ópera francesa também o levou a dedicar atenção especial à Suíte, que por ele se tornou, quase, um gênero especialmente francês.

A famosa e notória "ditadura de Lully” fez muitas vítimas. Uma delas, Marc-Antoine Charpentier (1634-1704) (Cl. Crussard, Marc-Antoine Charpentier, Paris, 1945), tornou-se postumamente um nome célebre, embora essa fama só se apoiasse, durante dois séculos e meio, em poucas obras conhecidas, sobretudo o oratório Le Reniement de Saint Pierre. Só em nossos dias chegou-se a estudar os 28 volumes de seus manuscritos, guardados na Biblioteca Nacional de Paris; e onde há obras de música sacra de grande valor, como um Magnificat, um suntuoso Te Deum e a Messe pour VAssomption. Mas esse "Anti-Lully” também escreveu a música para o Malade imaginaire; foi o colaborador musical de Molière. Outra vítima ilustre de Lully foi Michel Richard de Lalande (1657-1726), que teve a sorte de sobreviver por muito tempo ao ditador, terminando seus dias como regente de coro da capela do Castelo de Versalhes. Nessa capela foi em 1944 cantado, pela primeira vez desde 1707, o De Profundis de Lalande, música decorativa e suntuosa (assim como o Benedictus de 1695), com acentos de dramaticidade monteverdiana, mas pouco litúrgica; estilo Luís XIV. Imponente também é o Usquoque Domine (Salmo 13). Músicos e musicólogos franceses estão, nos últimos anos, vivamente empenhados em consertar a injustiça secular cometida contra Charpentier e Lalande.

Um último e retardado efeito do estilo monteverdiano é a ópera de Henry Purcell (1658-1695).(Edição das Obras pela Purccll-Socicty, 28 vols., 1878-1932; H. Dupré, Purcell, Paris, 1927; E. J. Dent, Foundation of English Qpera, Cambridge, 1928; J , A. Westrup, Purcell, Londres, 1937; R. E. Moore, Henry Purcell and the Restoration Theatre, Londres, 1961).

Quando ele nasceu, Monteverde já morrera e Schuetz estava muito velho; quando morreu, Bach, Handel e Domenico Scarlatti eram crianças. Purcell é o maior músico de sua época. Sua morte prematura, com 37 anos de idade, teria sido perda menor para a arte, se Purcell tivesse encontrado em vida as formas musicais de que seu gênio precisava.

O destino condenou-o a experimentador, a precursor. Nas suas 10 trio-sonatas (1683), das quais as mais famosas são a Sonata de Ouro, n.° 9, em já maior e a Sonata n.° 6 em sol menor (Chacony), é Purcell o precursor de Pergolese e de toda a música instrumental do século XVIII; mas não adivinha a sonata-forma. Continua cultivando formas antigas: as 15 Fantasies para 3 a 7 vozes de Zamba, que são aliás, ótima música. Da sua música sacra sobrevive o Te Deum de 1694, que os coros ingleses ainda costumam cantar no Natal, e as quatro odes para o dia de S. Cecília; é música concertante, parecida com a forma da cantata bachiana, antecipando efeitos de Handel, mas sem atingi-los. Caráter experimental também têm as obras dramáticas de Purcell. Não são óperas mas antes música de cena para peças teatrais, como King Arthur (1691); representado por Konrad no Festival de Nymphemburg, em 1921. Ópera verdadeira é Dido and Eneas (1689), que já voltou a aparecer no repertório moderno: obra belíssima, embora mais interessante pelos pormenores do que em conjunto.


Dido and Eneas é pendant musical da “tragédia heróica” da Restauração, dos Dryden e Otway, que foi tentativa menos bem sucedida de síntese do teatro elisabetiano e do classicismo francês. A tentativa de síntese do estilo de Monteverde com as qualidades dramatúrgicas próprias do teatro inglês também deu mistura algo heterogênea, embora cheia de colorido heroico e erótico. Nota-se a forte expressão dramática nos recitativos, o uso do folclore inglês nos coros, a preferência pelos ritmos de dança (influência de Lullyt). Em certos momentos se pensa em Gluck. A ideia de transplantar Virgílio para os campos ao lado do Tâmisa resultou em fusão de elementos classicistas e nacionais, quase uma antecipação do romantismo. Essa solitária obra-prima barroca é provavelmente a maior obra da música inglesa.



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O BARROCO: #MONTEVERDE E A ÓPERA VENEZIANA




A ópera florentina foi obra de intelectuais. A ópera do Barroco Médio já é arte aristocrática, da corte, assim como a arquitetura e a pintura da mesma época. É suntuosa e pomposa. Mas assim como nas artes plásticas barrocas, existe nela uma tensão íntima, produzida pela presença do elemento realista. Ao lado dos pintores acadêmicos de Bolonha, dos Carracci e Reni, está o realista Caravaggio; ao lado de El Greco, o realista Riberà. Em Bemini coexistem a soberbia atlética e o naturalismo do sentimento. Em Zurbarán coexistem o realismo espanhol e a mística. A ópera barroca é produto de uma colaboração fabulosa de artes arquitetônicas, cênicas, teatrais, musicais, a serviço de um novo realismo: da expressão dos sentimentos humanos pela melodia cantada.

Cláudio Monteverde (1567-1643) (Edição das Obras Completas por F, G. Malipiero, 13 vols., 1926 e Seguintes; F. G. Malipiero, Monteverde, Milão, 1929; H. Prunières, La Vie et Voeuvre de Cláudio Monteverde, 2.® ed., Paris, 1931; H. F. Redlich, Cláudio Monteverde, Bern a , 1949; M. Le Roux, Cláudio Monteverde•, Paris, 1951; L. Schradc, Monteverde, Creator of M odem Music, Londres, 1952) foi maestro de música na corte de Mântua; depois, regente do coro da basílica de San Marco, em Veneza; ordenou-se padre; seu túmulo fica na igreja dos Frari, perto do mausoléu de Tiziano. Foi homem altamente combativo, consciente do seu papel de revolucionário de uma arte multissecular. Suas Vesperae Virginis (1610), escritas na maneira nova, terminam com uma Missa a capela para 6 vozes, em estilo palestriniano. Será que o compositor quis demonstrar aos inimigos—de que havia muitos—sua capacidade de escrever no estilo “antigo”? É como se Stravinsky escrevesse uma sinfonia haydniaha para desmentir o boato de sua incapacidade de fazer música “acadêmica”; ou Schoenberg, um lied à maneira de Schubert. Ou então, seria aquela Missa espécie de expiação de um crime deliberadamente cometido, sinal de má consciência? Aquelas Vesperae, hoje facilmente acessíveis numa edição de H. F. Redlich (1934), já aparecem com certa frequência em nossos concertos: obra altamente convincente, de forte expressão religiosa. Para os contemporâneos de Monteverde, foi mesmo “forte” demais. Nunca antes se ouvira música sacra assim, com maciço acompanhamento instrumental e com solistas, cantando árias de comovente dramaticidade.

Motivo suficiente para o compositor fazer aquele gesto de penitência contrita. Monteverde tinha introduzido na música sacra os modos e meios de expressão da ópera. É mesmo o verdadeiro criador do gênero.

Na verdade, o Orfeo (1607), de Monteverde, é a primeira ópera que merece esse nome. Ainda hoje, nas edições-arranjos devidas a compositores modernos como Alfredo Casella e Carl Orff, ainda hoje faz forte efeito em nossas casas de ópera. Os solistas dominam o palco: pela primeira vez, a expressão musical é realmente dramática; o sentimento, puramente humano. Em torno dos solistas cantam coros; mas não têm nada que ver com os coros a capela da época polifônica; já desempenham exatamente o mesmo papel como os coros numa ópera de Gounod ou Verdi. A orquestra que acompanha os acontecimentos musicais no palco—é a primeira vez na história da música, que aparece a orquestra; e é surpreendentemente numerosa, composta de uma multidão de instrumentos de cordas: os contemporâneos chamavam-na de “guitarra enorme”. A todos os respeitos é Monteverde o criador da música moderna.

Foi, naturalmente, muito combatido. Um musicólogo erudito, o Cônego Giovanni Maria Artusi, polemizou contra Monteverde exatamente assim como Hanslick polemizará contra Wagner. Mas não foi possível voltar ao passado. Da segunda ópera de Monteverde, Arianna (Í608), perdeu-se a partitura; só possuímos uma pária: o célebre “Lamento” ("Lasciatemi morire...”), que pertence até hoje ao repertório de todas as cantoras (e cantores) de concerto; salvou-se porque foi durante toda a primeira metade do século XVII a melodia mais cantada na Itália, nas cortes, nos salões, nas tabernas, nas ruas, assim como hoje um “sucesso” de música popular. Monteverde tinha explorado a fundo a “verdade” da expressão; foi o primeiro que soube exprimir a tristeza, o desespero, a paixão, o triunfo. Seus precursores, a esse respeito, não foram os operistas llorentinos, mas os madrigalistas: Marenzio e Gesualdo, sobretudo. Mas a diferença é notável: naqueles, as dissonâncias foram a consequência da adaptação da escritura polifônica à declamação expressiva do texto; Monteverde, porém, escreve conscientemente de maneira homofônica. Chega a dissonâncias, não porque não sabe evitá-las, mas quando quer encontrá-las; e resolve-as pelos acordes harmônicos do baixo-contínuo. É música moderna.

Orfeo e Arianna foram escritas para a corte de Mântua. Alguns decênios mais tarde escreveu Monteverde suas últimas óperas para os teatros de Veneza. Mas não é possível acompanhar, passo por passo, a evolução do grande dramaturgo musical, porque as obras intermediárias se perderam. Só possuímos o Combattimento di Tancredo e Clorinda (1624), obra vigorosa, mas de menor vulto, que ainda hoje pode ser e é aproveitada como música de bailado. A evolução da técnica de Monteverde é, porém, evidente através das suas oito coleções de madrigais, publicadas entre 1587 e 1638; o madrigal foi seu campo de experiências, assim como para Beethoven a sonata para piano. Esses madrigais talvez sejam, por isso, as obras mais características do mestre, revelando "seu esplendor e sua miséria”. Da primeira coleção até os Madrigali guerrieri e amorosi (1638) podemos observar, em todos, sua curiosidade insaciável de pesquisa, seus ocasionais acertos maravilhosos, seus muitos fracassos. É música experimental. Os madrigais dos compositores inglêses elisabetianos, os de Gastoldi e Marenzio, até os de Gesualdo podiam ser, em nosso tempo, revivificados pelas associações madrigalescas. Os de Monteverde, não. São objetos para estudos históricos e da psicologia do compositor. Mas nem em todos os casos é assim. Vale a pena chamar a atenção para os seis madrigais Lagrime d’amante al sepolcro deli’amata, que a eminente professora francesa Nadia Boulanger mandou gravar em disco.

Enfim, Monteverde teve a capacidade, assim como Verdi dois séculos e meio depois, de renovar-se na velhice. O fruto maduro de tantas experiências meio sucedidas é a Ulncorovazionp di Poppea (1642): tragédia musical o enredo—a suntuosa decadência moral do Império Romano—prestava-se especialmente para ser transfigurada em música pelo gênio de Monteverde; lembra o teatro elisabetiano, como se possuíssemos óperas congeniais tiradas das tragédias de John Webster ou John Ford. Essa obra é a primeira música profundamente psicológica, representando "caracteres”, personagens dramáticos. Desde a reedição de 1950, essa última ópera de Monteverde reconquistou o palco moderno. A representação no Festival de, Aix-en-Pnovence, em 1961, teve sucesso tão grande que a obra parece agora continuar no repertório.

Monteverde, o grande renovador, foi, durante decênios, objeto preferido de estudos musicológicos. Continua a sê-lo. Mas não é uma figura só histórica. Orfeo, UIncoronazione di Poppea e as Vesperae Virginis voltaram a fazer parte integral da Música que entre nós vive.

Dos outros operistas do grupo veneziano não se pode afirmar o mesmo, apesar das reedições modernas. Francesco Cavalli (1602-1676) parece, em comparação com Monteverde, quase arcaico. Os recitativos dramaticamente agitados, na sua ópera Giasone (1649), não significam progresso na linha veneziana; antes realizam plenamente aquilo que fora o objetivo dos primeiros operistas florentinos. Arcaico também parece o Réquiem para 8 vozes que Cavalli escreveu em 1675, destinando-o para os seus próprios funerais: é obra de solenidade austera.

"Progressista” foi Marc'Antonio Cesti (1623-1669): já lhe importa menos a verdade da expressão do que a beleza da melodia. Escreve árias. La Dori (1661) foi sua ópera mais famosa. Possuímos notícias pormenorizadas sobre a representação de outra ópera sua, II Pomo d’oro (1666), escrita para núpcias na corte imperial de Viena: deve ter sido um espetáculo deslumbrante, com a colaboração de coros e bailados, numa arquitetura suntuosa, especialmente construída para esse fim, e com a aplicação de truques cênicos que pareciam fazer participar do espetáculo o céu, os ínferos e a Natureza toda.


Nem a leitura dessas obras nem sua representação em arranjos modernos dá ideia aproximada do que foi uma noite de ópera no século XVII. Então, sim, foi realizado o sonho de Wagner, o Gesamtkunstwerk, a obra na qual colaborariam a poesia dramática, a música, a dança e todas as artes plásticas. Em nossas bibliotecas ainda se conservam os desenhos cenográficos de arquitetos como os membros da família Galli-Bibbiena e os irmãos Bumacini, para representações de óperas em Veneza, Viena e Munique, superando, de longe, tudo que existe de arquitetura principesca em Versalhes ou Madri. Mas as artes cênicas de maquinistas como Nicola Sabbatini ou Giacomo Torelli—a descida de deuses olímpicos em máquinas de voar, a transformação repentina de bosques povoados de ninfas e sátiros em lagos cobertos de navios—essas artes da cena barroca foram mantidas em segredo; e estão perdidas para sempre.



domingo, 22 de outubro de 2017

AS ORIGENS DA ÓPERA E DO #BAIXO CONTINUO





Arte Clássica—Arte Barroca: eis os dois conceitos contraditórios a cujo antagonismo o grande Heinrich Woelfflin subordinou toda a história das artes plásticas. Parecem irreconciliáveis, na retrospectiva. Rafaelo e Bernini são polos opostos, para a crítica moderna. Aos contemporâneos, a diferença não parecia menor, mas antes gradual do que essencial. Os clássicos e os barrocos, estes e aqueles acreditavam ter feito o melhor para ressuscitar a arte grega antiga; e a um crítico do século XVII não se afigurava paradoxal a ideia de que Bernini não passava de um Rafaelo mais “intenso” e de maiores recursos técnicos. A Renascença, pensavam, não tivesse atingido completamente o grande objetivo de ressuscitar as artes da Antiguidade; o estilo barroco não foi sentido como viravolta revolucionária, mas como progresso.

Quanto mais se estudavam os testemunhos literários da Antiguidade, tanto mais se fortaleceu a opinião de que os gregos, na poesia e no teatro, tinham empregado os recursos da palavra e do canto, juntamente, para dar expressão aos sentimentos. Mas a música da Renascença não estava em condições de realizar esse ideal. Pois só admitia, na música sacra e no madrigal, o canto a capela, polifônico, de várias vozes contrapontisticamente combinadas.

E pode-se imaginar o papel de Orestes ou o de Electra, personagens de tragédia, cantado por um pequeno coro misto? Essa impossibilidade foi demonstrada por Orazio Vecchi (1550-1605), polifonista erudito que contribuiu com a maior eficiência para destruir o ideal da polifonia vocal. Na sua peça Anfiparnasso commedia harmônica, os atores no palco fazem apenas os gestos; seus papéis são cantados, nos bastidores, por coros de 4 e 5 vozes. O efeito é irresistivelmente cômico. A obra teria sido deliberadamente parodística? Em todo caso, mostrou indiretamente o caminho para o canto homófono, individual. O Anfiparnasso, escrito em 1594, ano da morte de Orlandus Lassus e de Palestrina, foi publicado em 1597. No mesmo ano de 1597 recitou-se em Florença a primeira ópera.

As origens da ópera florentina são literárias (M. Schneíder, Die Anfaenge des basso continuo, Leipzíg, 1918; H. Kretzschmar, Geschichte der Oper, Leipzig, 1919; R. Rolland, Histoire de VOpèra avant Lully et Scarlatti, 2.a ed. Paris, 1931). Em torno do mecenas Bardi reuniu-se um grupo de eruditos e literatos, entre eles Vincenzo Galilei, o pai do astrônomo, para estudar os motivos do fracasso, dos poetas trágicos italianos do século XVI em imitar a tragédia grega. Tinham sido muitos os equívocos com respeito à arte de Sófocles e Eurípides. Sobretudo, os poetas italianos não tinham prestado atenção ao fato bem testemunhado de que os papéis, na tragédia antiga, foram ditos numa espécie de "recitativo”, de "parlando”, isto é, declamação que se aproxima do canto. Para conseguir o verdadeiro efeito trágico—assim se pensava em Florença—seria necessário juntar aos versos a música. A ópera nasceu, portanto, de um equívoco filológico. Pois nada no mundo se parece menos com uma tragédia de Sófocles ou de Eurípides do que uma ópera de Monteverde ou de Alessandro Scarlatti.

Os primeiros libretos foram escritos pelo poeta Ottavio Rinuccini: Dafne (1597) e Euridice (1600); a música escreveu-a o maestro Jacopo Peri (1561-1633). Outra música para a mesma Euridice foi escrita em -1600 pelo cantor Giulio Caccini (1550-1618), autor de um volume de Nuove Musiche, isto é, canções novas porque para uma voz só: um verdadeiro revolucionário.

Entre a música de Peri e a de Caccini há diferenças evidentes: aquele declama o texto; este enfeita-o de melodias. O princípio é, porém, o mesmo: o canto é “homófono” (“monódico”). É a vitória do indivíduo sobre o coro; é o individualismo na música.

Mas aos ouvidos acostumados à polifonia a capela e aos acordes vocais soava a voz individual como insuficiente, como que precisando de um complemento. Devia acompanhá-la um instrumento, com preferência um instrumento de teclas, um dos precursores do nosso piano, porque nestes instrumentos se podem tocar acordes, substituindo uma multidão polifônica inteira. Mas não houve intenção nenhuma de desviar a atenção, do cantor para o instrumentalista. Este último limitou-se a fornecer a "harmonia”, completando continuamente os sons cantados, tocando acordes mais em baixo: é o basso continuo.

O novo gênero institui a soberania do cantor: é ele, o indivíduo, que está no centro, em vez do coro. Parece-se com o monarca absoluto, esse outro personagem central do Barroco, podendo dizer: "La musique c’est moi.” Em seu torno gira a corte toda de arquitetos e maquinistas de que se precisa para encenar o espetáculo.

Os instrumentalistas que tocam o “baixo-contínuo”, representam o povo, ficando na sombra, mas apoiando o edifício que cairia sem seu trabalho incessante. Contudo, o instrumentalista também guarda certa liberdade. O basso continuo não foi completamente escrito pelos compositores: os acordes foram apenas notados em espécie de linguagem cifrada, em números que indicam os intervalos, e que podem ser interpretados de maneiras diferentes. Ao “baixista” ficava larga margem de improvisação.


A esse respeito, também é soberano, assim como o súdito do monarca absoluto guardava, no foro íntimo, a liberdade da consciência. O canto monódico e o baixo-contínuo: eis os elementos da música barroca.



sábado, 21 de outubro de 2017

O #BARROCO





Acreditamos saber, depois de tantas discussões, o que é barroco; também na música. Os teóricos da música do século XVII confirmam nossos conceitos ou preconceitos. Citam um famoso sonêto do poeta barroco Marino: "È dei poeta il fin la meraviglia: Chi non ia far stupir, vada alia striglia.”

Exigem que a música também seja meravigliosa, grandiosa, ampollosa, massiccia; que chegue a produzir lo stupore dos ouvintes e a colpire i sensi. São conceitos familiares. Mas não se aplicam só à música barroca. Alguns valem, igualmente, para a contrapontística flamenga; outros, para a “grande ópera” de Meyerbeer, a música programática de Berlioz, os dramas musicais de Wagner, as sinfonias e óperas de Richard Strauss. Esses critérios são, no fundo, subjetivos: apenas se referem às impressões recebidas pelos ouvintes.

Mas a tentativa de referir-se à técnica musical e ao espírito atrás dela fornece resultado ainda mais insatisfatório. Pensando nas artes plásticas e na literatura do Barroco, podemos esperar da sua música as mais ricas complexidades polifônicas e a expressão de uma religiosidade mística. Mas então, os fatos nos decepcionam totalmente. O gênero musical dominante do século XVII não tem nada que ver com religiosidade mística: é a ópera. E em vez das complicações polifônicas, espera-nos o canto do solista, a homofonia, a ária. O gênio com que, na música, abre o século é o operista homofônico Monteverde.

O espetáculo é desconcertante. O século XVII é, nas artes plásticas, o de Bernini e Rembrandt, El Greco e Vermeer, Velazquez e Caravaggio; é, na literatura, o de Cervantes e Shakespeare, Donne e Molière, Calderón e Racine. Mas na música, o século XVII só produziu algumas poucas obras-primas de experimentadores geniais como Monteverde, Schuetz e Purcell. Os resultados definitivos— a música de Alessandro e Domenico Scarlatti, de Vivaldi, Bach e Handel—pertencem ao século XVIII; e não se parecem com os inícios.


Evidentemente, o problema do Barroco na música é diferente do mesmo problema nas outras artes. Será melhor adiar a discussão das teorias para examinar, antes, os fatos.





sexta-feira, 20 de outubro de 2017

O #MANEIRISMO





O termo "maneirismo” já não tem, como antigamente, sentido pejorativo. É geralmente usado, na história das artes plásticas, para a fase intermediária entre as últimas formas renascentistas e o Barroco. É pré-barroco porque já se aproxima do meraviglioso estupendo; ainda não é barroco porque, mesmo usando recursos colossais, continua dentro de limites clássicos ou classicistas da expressividade. '‘Maneirista” é o, estilo que pretende superar-se a si mesmo, sem dispor, ainda, de recursos inteiramente novos para tanto. Daí a impressão do exagero e da auto imitação, que não excluem a possibilidade de criar obras-primas.

Um dos recursos típicos do maneirismo em música é a “policoralidade”. O flamengo Adrian Willaert (c. 1480-1562), natural de Bruges, nomeado em 1527 regente do coro da basílica de San Marco em Veneza, observara as possibilidades sonoras de fazer alternar os coros colocados nos dois balcões superiores de que aquela basílica dispõe. Em motetes como Laudate pueri e Confitebor experimentou essa “conquista do espaço musical”, definição que lembra o caráter pré-barroco da iniciativa.

Essa “conquista” é obra de dois discípulos venezianos do mestre nórdico: Andrea Gabrieli (c. 1510-1586) e seu sobrinho Giovanni Gabrieli (1557-1612), (Edição das Sacrae Symphoniae, por P. Hindemith, Mainz, 1961; C. Winterfeld, Johannes Gabrieli und sein Zeilalter, 2 vols. Berlim, 1834 (Obra antiga, mas ainda não superada.);  L. Torchi, UArte Musicale in Italia, vols. 1I-III, 2.a ed., T urim, 1927), ambos organistas em San Marco.

A música de Andréa, em motetes como Deus misereatur e Benedicam Domino, já é de um colorido sonoro que lembra imediatamente a pintura veneziana contemporânea, Tiziano sobretudo. Giovanni, que foi o gênio, acrescenta a capacidade de expressão dramática. Nas suas Sacrae Symphoniae, de 1597, há obras-primas em que a alternância e reunião dos coros produz efeitos sonoros verdadeiramente assombrosos: assim o Miserere (6 vozes), O Domine Jesus Christe (8 vozes), Jubilate Deo (8 vozes), Domine, exaudi orationem meam (10 vozes), Ascendit Deus in jubilo (16 vozes) e o famoso Benedictus (para 8 coros). Este último e poucas outras obras, menores, pertencem ao repertório das associações corais. Mas, ainda mais que com respeito a Palestrina, cabe lembrar que só fazem o devido efeito na igreja e mesmo só em igrejas que dispõem das condições acústicas de San Marco. Por outro lado, só pela leitura, pelo estudo atento, revelam-se as grandes artes polifônicas de Giovanni Gabrieli, já muito diferentes do estilo palestriniano, pela distribuição sábia das vozes empregadas assim como um sinfonista moderno distribui os instrumentos da orquestra. Tudo isso serve a um fim que não tivera para Palestrina a mesma importância: serve à arte da interpretação expressiva e até dramática dos textos sacros. Giovanni Gabrieli já é um mestre pré-barroco. Antecipa fases muito posteriores da evolução da música. Algumas daquelas obras podem ser executadas ad libitum, a capela ou com acompanhamento do órgão; mais outras parecem exigir o acompanhamento por instrumentos de sopro. Enfim, esses instrumentos tornam-se independentes.

Os musicólogos têm dedicado estudo intenso a uma obra como a Sonata Piano e Forte, de Giovanni Gabrieli, obra puramente instrumental, na qual os dois coros de vozes humanas são substituídos por dois coros de trombones. —No seu tempo, Giovanni Gabrieli foi certamente um inovador revolucionário. Quando, em 1956, Igor Stravinsky regeu na basílica de San Marco, em Veneza, seu Canticum Sacrum ad honorem Sancti Marci nominis, a execução da obra moderna foi precedida pela de alguns coros de Andrea e Giovanni Gabrieli.

A música policoral ainda pertence à época da Contra-Reforma: seu lugar é nas igrejas vastas do estilo jesuítico, em que a liturgia, ajudada por todas as outras artes, pretende impressionar os fiéis. A mais impressionante dessas obras é devida a Orazio Benevoli (1602-1672): a Missa Solene para a inauguração do novo domo de Salzburgo (1628). Essa obra estava, como tantas outras da época, destinada para ser executada só uma vez, em determinada ocasião; dormiu, depois, durante quase três séculos, esquecida nos arquivos da Cúria Metropolitana de Salzburgo; quando o grande musicólogo vienense Guido Adler a redescobriu e editou em 1903 (Monumentos da Música na Áustria, vol. X), nada foi mais natural do que pensar nas missas sinfônicas de Bruckner e nas colossais sinfonias corais de Mahler: pois a Missa de Benevoli é escrita para 8 solistas, 8 coros, orquestra de 34 vozes instrumentais e 2 órgãos. As opiniões sobre o valor musical dessa obra são divididas: alguns censuram a extrema simplicidade dos temas (mas com temas mais complexos ninguém chegaria a dominar a massa sonora, 52 vezes dividida); outros (entre eles o próprio Guido Adler) admiram a força impressionante de trechos como “Unam sanctam”. Os contemporâneos, de que possuímos testemunhos da execução de 1628, consideravam Benevoli como o sucessor e superador de Palestrina, porque teria “conquistado novos espaços sonoros". A expressão tem sabor barroco; mas a argumentação antes lembra as definições do maneirismo, cujo último representante, escrevendo para 48 vozes e mais, em época de plena homofonia opcrística, será outrora famoso Giuseppe Ottavio Pitoni (1657-1743).

No resto, é preciso considerar que o polifonismo extremo de um Benevoli só é, muitas vezes, aparente: não pode (nem quer) evitar que os coros (os vocais e os instrumentais) apenas alternem, ou então, que certas vozes dobrem ou redobrem outras. Obras dessa natureza já não teriam sido possíveis a capela, porque os coros cairiam em confusões inextricáveis; mas a necessidade do acompanhamento por acordes favorece a maneira de escrever “verticalmente”, harmonicamente. A polifonia policoral passou por um processo de autodestruição; o resultado será o acompanhamento instrumental de uma vez só: a homofonia.

Ao mesmo resultado levou a evolução do madrigal. Nos madrigais sacros de Palestrina, o desejo de expressividade já produziu cromatismos inesperados e dissonâncias. Assim também, nos de Marenzio. Um caso extremo, comparavel à “policoralidade” extrema de Benevoli, é Cario Gesualdo, príncipe de Venosa (c. 1560-1614) (C. e Ph. Heseltme, Cario Gesualdo, Londres, 1926). Há séculos, esse nobre diletante é um autor preferido dos que procuram na história “histórias interessantes”. Pois teve uma vida romântica; assassinou sua esposa infiel Maria d’Avalos e o amante dela; e só depois de longos anos de penitência, a angústia intima levou-o a dedicar-se à arte. Entre seus madrigais, publicados em vários volumes entre 1594 e 1611, há peças que não podem deixar de assombrar os musicólogos. Moro lasso e Resta di darmi noia, que, hoje em dia, se voltou a cantar, têm sabor romântico. Em outros madrigais, o cromatismo extremado lembra Tristão e Isolda. Em mais outros, já não é possível reconhecer a tonalidade, como se fossem obras da fase atonal de Schoenberg.O sistema tonal da época da polifonia vocal está em plena dissolução: está às portas daquele caos com que se inicia, na música, a época barroca.


Gesualdo foi “um. embriagado de sons novos” como Debussy. Sua modernidade parece inesgotável. Stravinsky transcreveu-lhe para pequena orquestra de câmara os três madrigais Ascingate Ibegh occhi, Ma tu, cagion di quella, e Beltà poi cke fassenti, como Monumentum pro Gesualdo di Venose (1960). Execuções recentes de certos madrigais nunca deixaram de surpreender o público. Mas nem isto pode levar-nos a ver nesse personagem romântico um gênio—como Aldous Huxley o fez num ensaio—o criador da música moderna. Só foi o São João Batista de um maior: Monteverde.



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A #CONTRA-REFORMA: PALESTRINA





O movimento caracterizado pela fundação da Companhia de Jesus e pelo Concilio de Trento só podia ser batizado com o nome de Contra-Reforma por historiadores protestantes, que o consideravam como resistência da velha Igreja agonizante contra a Reforma vitoriosa. Os fatos históricos não confirmam essa falsa perspectiva. A Igreja de Roma não morreu. Ao contrário: no fim do século XVI já tinha reconquistado metade dos países ao Norte dos Alpes, além de ficarem extintos os focos de heresia na Itália e Espanha. Deveu essas vitórias ao fato de que a chamada Contra-Reforma foi uma verdadeira Reforma: dogmática (dentro dos limites da tradição imutável), administrativa e moral.

Também se reformou o culto. Também se reformou a música do culto. Um dos instrumentos mais poderosos da propaganda jesuítica foi a liturgia romana à qual os protestantes não tinham o que opor senão o verbo bíblico, interpretado no sermão pelo ministro. Mas na igreja católica colaboram as artes plásticas e a música para representar a verdade religiosa: de uma maneira que assombra os espíritos simples, eleva os de elite e confunde a todos.
Quanto à música, trata-se de uma reforma não somente litúrgica, mas também musical. Para a verdade religiosa ficar representada, têm os fiéis de entender bem as palavras sacras que o coro canta. Essa exigência exclui inapelàvelmente os L'homme armé, MaIheur me bat, Se fti face e outras melodias profanas que os mestres flamengos tomaram como bases temáticas de suas obras; depois, obriga a reduzir a abundância e suntuosidade de artes contrapontísticas, impedindo também o canto simultâneo de textos diferentes; enfim, essa simplificação da polifonia torna dispensável o apoio do coro em acompanhamento instrumental, de modo que até o órgão pode ficar calado ou então limitar-se a poucos acordes iniciais, à guisa de prelúdio. A música da “Contra-Reforma” é rigorosamente desacompanhada, a capela. Só a voz da criatura humana é digna de louvar o Criador. Eis os elementos básicos do estilo chamado “de Palestrina”.
Suas origens não se encontram na Itália, mas na Espanha: assim como a reforma da Igreja espanhola pela Rainha Isabel e pelo Cardeal Ximénez precedera à reforma da Igreja universal e romana pelo Concilio de Trento. O primeiro mestre daquele estilo é o espanhol Cristóbal Morales (1512-1553) (R. Mitj ana, Cristóbal Morales, Madri, 1920), que foi membro do coro da Capela Sistina em Roma; ali ainda hoje se canta, ocasionalmente, seu motete Lamentabalur Jacob, que já tem todas as qualidades características do novo estilo. Outros motetes de Morales, como Emendemns in Melins, foram reimpressos encantados no México. O mestre é precursor de Palestrina.
Giovanni Pierluigi da Palestrina (c. 1525-1594) (Edição das Obras Completas por Witt, Espagnc, Commer e Haberl, 38 vols., 1862-1908; Nova edição das Obras por R. Casimiri, Roma, 1939 e seguintes; M. Brenet, Palestrina, 2.a ed., Paris, 1914; A. Cametti, Palestrina, Milão, 1925; K. Jeppesen, Der Palestrinastil und die Dissonanz, Leipzig, 1925; K. G. Fellerer, Der Paiestrina-Stii, Leipzig, 1929; J. Sarason, Palestrina ou ia Poésie de VExactitude, Genebra. 1940) é o mais “clássico” dos compositores; naturalmente, não nó sentido da música clássica vienense de Haydn, Mozart e Beethoven, mas no sentido de equilíbrio perfeito, latino, assim como são chamados clássicos os grandes escritores franceses da época de Luís XIV.

Mas é preciso advertir contra comparações ilícitas. Chamar, por exemplo, Palestrina de ‘‘Bach católico” só pode significar que o latino ocupa dentro da música da Igreja romana a mesma posição de destaque que Bach ocupa dentro da música da Igreja luterana; mas para nós, numa época em que nem esta nem aquela Igreja dispõe de música viva, aquelas posições históricas não têm nenhuma importância ou significação: a comparação serve apenas para esconder ao menos informados as diferenças fundamentais: Bach não é “clássico” em nenhum sentido estilístico da palavra, de modo que é capaz de exercer a mais profunda influência sobre a música moderna; enquanto Palestrina é “clássico" dentro de um estilo há séculos extinto e já por ninguém cultivado. É um grande fenômeno histórico.

A vida de Palestrina foi mais agitada do que a serenidade imperturbável da sua arte deixa entrever. Foi, sucessivamente, regente da Capela Giulia, cantor na Capela Papal, regente do coro de San Giovanni in Laterano, do coro de Santa Maria Maggiore, enfim de San Pietro in Vaticano; e mudou tanto porque houve muitos conflitos; porque o triunfo da sua música, sendo oficialmente reconhecida como a da Igreja Romana, foi a fase final de uma grande luta. Uma lenda muito divulgada e até hoje repetida por certos historiadores concentra todas aquelas lutas num único momento histórico: no Concilio de Trento. Insatisfeitos com a polifonia dos mestres "flamengos”, com a incompreensibilidade das palavras sacras e a intervenção de textos profanos, os cardeais, bispos e doutores reunidos naquele Concilio teriam pensado em proibir toda música polifônica, permitindo apenas o Coral Gregoriano; mas a audição da célebre Missa Papae Marcelli, de Palestrina, obra polifônica sem nenhuma daquelas ofensas à liturgia, teria feito mudar de opinião os prelados e teólogos.

É uma lenda. Realmente, houve a intenção de proibir a polifonia na música litúrgica. Mas não foi aquela Missa que impediu a catástrofe. No entanto, a lenda tem vida tenaz: ainda em nosso tempo forneceu o enredo para a notável ópera Palestrina, de Pfitzner, cuja música não tem, aliás, o menor ponto de contato com a palestriniana. Mas o público precisa, parece, de estímulos literários ou pseudoliterários para encontrar algo de "interessante” naquela música. A arte de Palestrina parece-nos a de um mundo alheio da nossa vida musical. Realmente, só existe para servir à liturgia. Palestrina não é um grande compositor que escreve música sacra; é um liturgista que sabe fazer grande música. É isto que lhe garantiu, enfim, a vitória; mas também é isto que o torna tão dificilmente acessível. Pois Palestrina é mais “moderno” do que se pensa. Seu objetivo foi este: tornar o texto sacro, na boca dos cantores, compreensível (o que não acontecera na música dos mestres “flamengos”), sem renunciar à polifonia.

Para esse fim, reduziu as complicações contrapontísticas; traçou limites certos à independência melódica das muitas vozes, obrigando-as a coincidir em acordes que, pela consonância, focalizam a palavra. Declamando o texto sacro, confere-lhe a pronúncia certa por colunas de acordes que acentuam as sílabas importantes. Com isso, o princípio da polifonia linear, o da independência das vozes, está parcialmente abandonado: a música de Palestrina ainda é horizontal, melódica, mas também já é vertical, harmônica; e por isso é de eufonia nunca antes obtida. Palestrina escreve nesse estilo "declamatório” porque pretende, muito mais do que os mestres “flamengos”, exprimir musicalmente o sentido emocional dos textos: a tristeza neste vale de lágrimas e o júbilo dos santos. Sua música é, dentro de limites certos, expressiva.

Para tanto não procura, na verdade, as modulações de uma tonalidade para outra, o cromatismo; mas não o evita quando parece indispensável. E quando não escreve diretamente para uso litúrgico, como nos madrigais sobre textos do Cântico dos Cânticos (1584), nem sequer evita a dissonância.

Mas é preciso explicar e comentar ao ouvinte moderno esses traços de “modernidade” para ele percebê-los. Quem não estudou em profundidade o estilo palestriniano, achará que todas as obras do mestre são iguais; assim como nos museus de Florença e Roma, todos os quadros de Andrea dei Sarto parecem igualmente belos, até monotonamente belos. É uma ilusão produzida por aquele equilíbrio clássico entre a polifonia e a declamação, e mais por algumas outras qualidades características, sobretudo pela falta de movimento rítmico em nosso sentido: a notação dessa música não precisa de divisão em compassos. Daí a impressão de monotonia.

Um crítico inglês disse, jocosamente, que na execução de uma Missa de Palestrina se poderiam pular várias páginas sem alguém percebê-lo. Há nessa observação irreverente um grão de verdade: mas o ouvinte logo perceberia a omissão se acompanhasse a música, na igreja, com o missal na mão. A música de Palestrina não deveria ser executada nas salas de concerto, embora as grandes associações corais não queiram desistir de ocasional execução da Missa Papae Marcelli ou do Stabat Mater. No recinto profano, essas obras estão tão deslocadas como os quadros de altar da Renascença nos grandes museus; cansam, em vez de edificar. O lugar das obras de Palestrina é na igreja.

É uma arte antiga; mas não é uma arte morta. Pelo menos nas basílicas e em outras grandes igrejas da cidade de Roma, um certo número de missas de Palestrina pertence ao repertório permanente: as Missas Alma Redemptoris, Beatus Laurentius, Ecce Johannes, Super Voces, O admirabile commercium, O Magnum mysterium, Quem dicunt homines, Tu es pastor, Tu es Petrus, Viri Galilaei, a Missa Hodie Christus natus est, para a noite de Natal e a calma Missa pro de-unctis. Durante a Semana Santa cantam-se na Capela Sistina os motetes Pueri hebraeorum e Fratres ego enim, as famosas Lamentationes (1588) e os não menos famosos Improperia; e depois das cerimônias que iniciam a Páscoa, é executada a Missa Papae Marcelli. Esta missa, de 1567, não é a maior obra de Palestrina, mas é a mais famosa, de puríssima eufonia e de solenidade sóbria: o texto litúrgico é declamado, de propósito, com grande simplicidade, como para salientar a ortodoxia impecável da interpretação do texto. Em compensação, Palestrina dá brilhante amostra das suas artes contrapontísticas na Missa UHomme armé (1570), a última que foi escrita à maneira dos mestres "flamengos"; e em mais outras missas sabe habilmente esconder as complicações polifônicas para impressionar os músicos sem desagradar aos teólogos. Sua obra-prima talvez seja a Missa Assumpta est (1583), majestosa e no entanto profundamente sentida; menos jubilosa do que se poderia pensar, antes inspirada pela tristeza dos que, tendo assistido à Assunção, continuam, filhos de Eva, neste vale de lágrimas.

Ao leigo que pretende iniciar-se na música palestriniana, serão mais acessíveis as obras curtas, os motetes. São muitos; e alguns continuam sendo cantados não só em Roma, mas em todas as maiores igrejas do mundo católico: Surge illuminare e O Magnum mysterium; os Magnificats (sobretudo o no 4.° tono); o Salve Regina (4 vozes); o jubiloso e extático Dum complerentur (para o Domingo de Pentecostes); Tribularer si nescires', o melancólico Paucitas dierum, dizendo das atribulações de Jó; o Pangue lingua; Peccavimus', Viri Galilaei; Accepit Jesus calicem; e os salmos Super flumina e Sicut cervus. É, porém, muito característico o fato de que nenhuma obra de Palestrina conquistou fama tão universal como o pequeno Stabat Mater de 1591, que, já no século XVIII, o musicólogo inglês Burncy popularizou: pois é a obra menos típica e mais “moderna” do mestre. Nela, as vozes já não têm independência melódica; a composição é uma sucessão de admiráveis acordes vocais de sabor místico, de “colunas” sonoras. É a transição: da música polifônica, horizontal, para a música vertical, harmônica.

Entre os sucessores (em parte: contemporâneos) de Palestrina, em Roma, só poucos nomes pertencem à música ainda hoje “viva”: Giovanni Maria Nanino (1545-1607), do qual a Capela Sistina canta, na noite de Natal, o motete Hodie nobis coelorüm réx; Felice Anerio (1560-1614), sucessor de Palestrina na regência do coro de San Pietro in Vaticano, autor de um famoso motete Adoramus le, Christe e de uma Missa Veni sponsa, tão bela que foi durante séculos atribuída ao próprio Palestrina; seu irmão Giovanni Francesco Anerio (1567-1621), cujo motete Ciiristus factus est continua no repertório das associações corais. Fora de Roma, é digno de memória o vêneto Giovanni Matteo Asola (1560-1609), cujos motetes (Omnes de Saba e outros) e Salmi vesperal até hoje se podem ouvir nas igrejas de Treviso e Vicenza.

A origem ibérica do estilo palestriniano não foi esquecida em Roma onde colocaram, na admiração geral, ao lado de Palestrina o grande mestre espanhol Tomás Luís de Victoria (c. 1540-1611) (Edição daa Obras por F. Pedrell, 1902-1913; H. Collet, Victoria, Paris, 1913; F. Pedrell, Tomás Luis de Victoria, Valência, 1918; R. Casimiri, Vittoria, Roma, 1934). Natural de Ávila, foi cedo para Roma, onde trabalhava como regente do coro do Collegium Germanicum dos Jesuítas; como capelão da Imperatriz Maria voltou com ela para a Espanha.

Nota-se logo uma diferença: Palestrina tinha muitas dificuldades em desempenhar funções litúrgicas, porque era leigo e casado. Victoria era sacerdote. Nunca escreveu uma linha de música profana. Mas sua música sacra é tanto mais expressiva; é altamente dramática, embora sem atravessar, jamais, os limites traçados pelas exigências litúrgicas. Se a música de Palestrina lembra a luminosidade do ar em basílicas como Santa Maria Maggiore e San Pietro in Vaticano, a de Victoria faz pensar na escuridão mística das catedrais de Burgos e Toledo. Palestrina nunca escreveu uma página tão sombria e trágica como o famoso "Tenebrae factae sunt” (do Ofício para a Semana Santa), de Victoria. A preferência pelo tom menor parece corresponder à mística espanhola; nesse sentido, pode-se aceitar a comparação com Santa Teresa, que foi sua conterrânea, de Ávila, enquanto as comparações da música de Victoria com a pintura mística do Greco parecem exageradas. Por outro lado, num motete como o jubiloso Gaudent in coelis é evidente a presença de ritmos tipicamente espanhóis.

Nas igrejas católicas do mundo inteiro cantam-se, até hoje, alguns motetes de Victoria: O quam gloriosum, Jesus dulcis memória, Vere languore, O vos omnes, O sacrum convivium e poucos outros. Das obras de maior vulto, está em primeiro lugar a Missa Vidi speciosam (1592), seguida pelas Missas O quam gloriosum, Ave maris stella, De Batalle, Simile est regnum e Pro Victoria (1600). Mas admiramos, antes de tudo, a música litúrgica completa para a Semana Santa, o Officium Hebdomadae Sanctae (1585), e o Officium defunctorum (1605), missa de réquiem e “orações de tumba" (6 vozes) escrita para a morte da Imperatriz Maria, obra de solenidade sombria, e em certos momentos, de exaltação mística; é essa que já fez pensar no Entierro dei conde Orgaz, de Domenico Theotocopuli el Greco. Victoria é novamente reconhecido, desde que Felipe Pedrell lhe reeditou em nosso tempo as obras, como par de Palestrina.

A tradição palestriniana ficou viva em Roma durante mais de um século. Um grande nome ainda é Gregorio Allegri (1584-1652), do qual a Capela Sistina canta, no primeiro Domingo do Advento, o motete Salvatorem expectamus, e, na quarta-feira da Semana Santa, o famosíssimo Miserere (1638), que foi durante dois séculos uma das principais atrações turísticas de Roma; veja-se o soneto do grande poeta dialetal romano Belli, sobre os “Ingresi de Piazza de Spagna” que vão a São Pedro para ouvir "ermiserere che gnisun istrumento Vaccompagna”. Durante séculos foi proibido copiar os originais dessa obra nunca impressa; o jovem Mozart, quando em Roma, em 1770, com 14 anos de idade, depois de ter ouvido uma só vez essa obra polifônica, notou-a, toda, de memória. O Miserere de Allegri é, aliás, menos complicado do que se diz; não é para 9 vozes, mas para dois coros, de 4 e 5 vozes respectivamente, que alternam. O compositor já está sob a influência da música policoral dos venezianos.


É possível definir exatamente as qualidades musicais do estilo palestriniano. É muito mais difícil coordená-lo com o estilo de outras artes da mesma época. Os musicólogos do século XIX compararam Palestrina a Rafaelo e Correggio, o que hoje nos parece pouco acertado; não considera bem a posição do compositor dentro do movimento contra-reformista; em comparação com ele, aqueles dois pintores são pagãos. Palestrina já não pertence à Renascença. Mas também não é possível defini-lo—como já se fez —como músico barroco; para tanto, não é bastante místico nem exaltado nem realista nem pomposo. A correspondência perfeita do seu estilo com a nova basílica de San Pietro in Vaticano antes faz pensar no maior arquiteto dela, em Miguel Ângelo, dos últimos anos da sua vida. De Palestrina e de Miguel Ângelo chega-se, na música e nas artes plásticas, ao maneirismo.