segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O BARROCO: #MONTEVERDE E A ÓPERA VENEZIANA




A ópera florentina foi obra de intelectuais. A ópera do Barroco Médio já é arte aristocrática, da corte, assim como a arquitetura e a pintura da mesma época. É suntuosa e pomposa. Mas assim como nas artes plásticas barrocas, existe nela uma tensão íntima, produzida pela presença do elemento realista. Ao lado dos pintores acadêmicos de Bolonha, dos Carracci e Reni, está o realista Caravaggio; ao lado de El Greco, o realista Riberà. Em Bemini coexistem a soberbia atlética e o naturalismo do sentimento. Em Zurbarán coexistem o realismo espanhol e a mística. A ópera barroca é produto de uma colaboração fabulosa de artes arquitetônicas, cênicas, teatrais, musicais, a serviço de um novo realismo: da expressão dos sentimentos humanos pela melodia cantada.

Cláudio Monteverde (1567-1643) (Edição das Obras Completas por F, G. Malipiero, 13 vols., 1926 e Seguintes; F. G. Malipiero, Monteverde, Milão, 1929; H. Prunières, La Vie et Voeuvre de Cláudio Monteverde, 2.® ed., Paris, 1931; H. F. Redlich, Cláudio Monteverde, Bern a , 1949; M. Le Roux, Cláudio Monteverde•, Paris, 1951; L. Schradc, Monteverde, Creator of M odem Music, Londres, 1952) foi maestro de música na corte de Mântua; depois, regente do coro da basílica de San Marco, em Veneza; ordenou-se padre; seu túmulo fica na igreja dos Frari, perto do mausoléu de Tiziano. Foi homem altamente combativo, consciente do seu papel de revolucionário de uma arte multissecular. Suas Vesperae Virginis (1610), escritas na maneira nova, terminam com uma Missa a capela para 6 vozes, em estilo palestriniano. Será que o compositor quis demonstrar aos inimigos—de que havia muitos—sua capacidade de escrever no estilo “antigo”? É como se Stravinsky escrevesse uma sinfonia haydniaha para desmentir o boato de sua incapacidade de fazer música “acadêmica”; ou Schoenberg, um lied à maneira de Schubert. Ou então, seria aquela Missa espécie de expiação de um crime deliberadamente cometido, sinal de má consciência? Aquelas Vesperae, hoje facilmente acessíveis numa edição de H. F. Redlich (1934), já aparecem com certa frequência em nossos concertos: obra altamente convincente, de forte expressão religiosa. Para os contemporâneos de Monteverde, foi mesmo “forte” demais. Nunca antes se ouvira música sacra assim, com maciço acompanhamento instrumental e com solistas, cantando árias de comovente dramaticidade.

Motivo suficiente para o compositor fazer aquele gesto de penitência contrita. Monteverde tinha introduzido na música sacra os modos e meios de expressão da ópera. É mesmo o verdadeiro criador do gênero.

Na verdade, o Orfeo (1607), de Monteverde, é a primeira ópera que merece esse nome. Ainda hoje, nas edições-arranjos devidas a compositores modernos como Alfredo Casella e Carl Orff, ainda hoje faz forte efeito em nossas casas de ópera. Os solistas dominam o palco: pela primeira vez, a expressão musical é realmente dramática; o sentimento, puramente humano. Em torno dos solistas cantam coros; mas não têm nada que ver com os coros a capela da época polifônica; já desempenham exatamente o mesmo papel como os coros numa ópera de Gounod ou Verdi. A orquestra que acompanha os acontecimentos musicais no palco—é a primeira vez na história da música, que aparece a orquestra; e é surpreendentemente numerosa, composta de uma multidão de instrumentos de cordas: os contemporâneos chamavam-na de “guitarra enorme”. A todos os respeitos é Monteverde o criador da música moderna.

Foi, naturalmente, muito combatido. Um musicólogo erudito, o Cônego Giovanni Maria Artusi, polemizou contra Monteverde exatamente assim como Hanslick polemizará contra Wagner. Mas não foi possível voltar ao passado. Da segunda ópera de Monteverde, Arianna (Í608), perdeu-se a partitura; só possuímos uma pária: o célebre “Lamento” ("Lasciatemi morire...”), que pertence até hoje ao repertório de todas as cantoras (e cantores) de concerto; salvou-se porque foi durante toda a primeira metade do século XVII a melodia mais cantada na Itália, nas cortes, nos salões, nas tabernas, nas ruas, assim como hoje um “sucesso” de música popular. Monteverde tinha explorado a fundo a “verdade” da expressão; foi o primeiro que soube exprimir a tristeza, o desespero, a paixão, o triunfo. Seus precursores, a esse respeito, não foram os operistas llorentinos, mas os madrigalistas: Marenzio e Gesualdo, sobretudo. Mas a diferença é notável: naqueles, as dissonâncias foram a consequência da adaptação da escritura polifônica à declamação expressiva do texto; Monteverde, porém, escreve conscientemente de maneira homofônica. Chega a dissonâncias, não porque não sabe evitá-las, mas quando quer encontrá-las; e resolve-as pelos acordes harmônicos do baixo-contínuo. É música moderna.

Orfeo e Arianna foram escritas para a corte de Mântua. Alguns decênios mais tarde escreveu Monteverde suas últimas óperas para os teatros de Veneza. Mas não é possível acompanhar, passo por passo, a evolução do grande dramaturgo musical, porque as obras intermediárias se perderam. Só possuímos o Combattimento di Tancredo e Clorinda (1624), obra vigorosa, mas de menor vulto, que ainda hoje pode ser e é aproveitada como música de bailado. A evolução da técnica de Monteverde é, porém, evidente através das suas oito coleções de madrigais, publicadas entre 1587 e 1638; o madrigal foi seu campo de experiências, assim como para Beethoven a sonata para piano. Esses madrigais talvez sejam, por isso, as obras mais características do mestre, revelando "seu esplendor e sua miséria”. Da primeira coleção até os Madrigali guerrieri e amorosi (1638) podemos observar, em todos, sua curiosidade insaciável de pesquisa, seus ocasionais acertos maravilhosos, seus muitos fracassos. É música experimental. Os madrigais dos compositores inglêses elisabetianos, os de Gastoldi e Marenzio, até os de Gesualdo podiam ser, em nosso tempo, revivificados pelas associações madrigalescas. Os de Monteverde, não. São objetos para estudos históricos e da psicologia do compositor. Mas nem em todos os casos é assim. Vale a pena chamar a atenção para os seis madrigais Lagrime d’amante al sepolcro deli’amata, que a eminente professora francesa Nadia Boulanger mandou gravar em disco.

Enfim, Monteverde teve a capacidade, assim como Verdi dois séculos e meio depois, de renovar-se na velhice. O fruto maduro de tantas experiências meio sucedidas é a Ulncorovazionp di Poppea (1642): tragédia musical o enredo—a suntuosa decadência moral do Império Romano—prestava-se especialmente para ser transfigurada em música pelo gênio de Monteverde; lembra o teatro elisabetiano, como se possuíssemos óperas congeniais tiradas das tragédias de John Webster ou John Ford. Essa obra é a primeira música profundamente psicológica, representando "caracteres”, personagens dramáticos. Desde a reedição de 1950, essa última ópera de Monteverde reconquistou o palco moderno. A representação no Festival de, Aix-en-Pnovence, em 1961, teve sucesso tão grande que a obra parece agora continuar no repertório.

Monteverde, o grande renovador, foi, durante decênios, objeto preferido de estudos musicológicos. Continua a sê-lo. Mas não é uma figura só histórica. Orfeo, UIncoronazione di Poppea e as Vesperae Virginis voltaram a fazer parte integral da Música que entre nós vive.

Dos outros operistas do grupo veneziano não se pode afirmar o mesmo, apesar das reedições modernas. Francesco Cavalli (1602-1676) parece, em comparação com Monteverde, quase arcaico. Os recitativos dramaticamente agitados, na sua ópera Giasone (1649), não significam progresso na linha veneziana; antes realizam plenamente aquilo que fora o objetivo dos primeiros operistas florentinos. Arcaico também parece o Réquiem para 8 vozes que Cavalli escreveu em 1675, destinando-o para os seus próprios funerais: é obra de solenidade austera.

"Progressista” foi Marc'Antonio Cesti (1623-1669): já lhe importa menos a verdade da expressão do que a beleza da melodia. Escreve árias. La Dori (1661) foi sua ópera mais famosa. Possuímos notícias pormenorizadas sobre a representação de outra ópera sua, II Pomo d’oro (1666), escrita para núpcias na corte imperial de Viena: deve ter sido um espetáculo deslumbrante, com a colaboração de coros e bailados, numa arquitetura suntuosa, especialmente construída para esse fim, e com a aplicação de truques cênicos que pareciam fazer participar do espetáculo o céu, os ínferos e a Natureza toda.


Nem a leitura dessas obras nem sua representação em arranjos modernos dá ideia aproximada do que foi uma noite de ópera no século XVII. Então, sim, foi realizado o sonho de Wagner, o Gesamtkunstwerk, a obra na qual colaborariam a poesia dramática, a música, a dança e todas as artes plásticas. Em nossas bibliotecas ainda se conservam os desenhos cenográficos de arquitetos como os membros da família Galli-Bibbiena e os irmãos Bumacini, para representações de óperas em Veneza, Viena e Munique, superando, de longe, tudo que existe de arquitetura principesca em Versalhes ou Madri. Mas as artes cênicas de maquinistas como Nicola Sabbatini ou Giacomo Torelli—a descida de deuses olímpicos em máquinas de voar, a transformação repentina de bosques povoados de ninfas e sátiros em lagos cobertos de navios—essas artes da cena barroca foram mantidas em segredo; e estão perdidas para sempre.



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