Arte Clássica—Arte Barroca: eis os dois conceitos
contraditórios a cujo antagonismo o grande Heinrich Woelfflin subordinou toda a
história das artes plásticas. Parecem irreconciliáveis, na retrospectiva. Rafaelo
e Bernini são polos opostos, para a crítica moderna. Aos contemporâneos, a
diferença não parecia menor, mas antes gradual do que essencial. Os clássicos e
os barrocos, estes e aqueles acreditavam ter feito o melhor para ressuscitar a arte
grega antiga; e a um crítico do século XVII não se afigurava paradoxal a ideia
de que Bernini não passava de um Rafaelo mais “intenso” e de maiores recursos
técnicos. A Renascença, pensavam, não tivesse atingido completamente o grande
objetivo de ressuscitar as artes da Antiguidade; o estilo barroco não foi
sentido como viravolta revolucionária, mas como progresso.
Quanto mais se estudavam os testemunhos literários
da Antiguidade, tanto mais se fortaleceu a opinião de que os gregos, na poesia
e no teatro, tinham empregado os recursos da palavra e do canto, juntamente,
para dar expressão aos sentimentos. Mas a música da Renascença não estava em
condições de realizar esse ideal. Pois só admitia, na música sacra e no
madrigal, o canto a capela, polifônico, de várias vozes contrapontisticamente
combinadas.
E pode-se imaginar o papel de Orestes ou o de
Electra, personagens de tragédia, cantado por um pequeno coro misto? Essa
impossibilidade foi demonstrada por Orazio
Vecchi (1550-1605), polifonista erudito que contribuiu com a maior
eficiência para destruir o ideal da polifonia vocal. Na sua peça Anfiparnasso commedia
harmônica, os atores no palco fazem apenas os gestos; seus papéis são cantados,
nos bastidores, por coros de 4 e 5 vozes. O efeito é irresistivelmente cômico.
A obra teria sido deliberadamente parodística? Em todo caso, mostrou
indiretamente o caminho para o canto homófono, individual. O Anfiparnasso, escrito
em 1594, ano da morte de Orlandus Lassus e de Palestrina, foi publicado em
1597. No mesmo ano de 1597 recitou-se em Florença a primeira ópera.
As origens da ópera florentina são literárias (M. Schneíder, Die Anfaenge des basso
continuo, Leipzíg, 1918; H. Kretzschmar, Geschichte der Oper, Leipzig, 1919; R.
Rolland, Histoire de VOpèra avant Lully et Scarlatti, 2.a ed. Paris, 1931).
Em torno do mecenas Bardi reuniu-se um grupo de eruditos e literatos, entre eles
Vincenzo Galilei, o pai do astrônomo, para estudar os motivos do fracasso, dos
poetas trágicos italianos do século XVI em imitar a tragédia grega. Tinham sido
muitos os equívocos com respeito à arte de Sófocles e Eurípides. Sobretudo, os
poetas italianos não tinham prestado atenção ao fato bem testemunhado de que os
papéis, na tragédia antiga, foram ditos numa espécie de "recitativo”, de
"parlando”, isto é, declamação que se aproxima do canto. Para conseguir o
verdadeiro efeito trágico—assim se pensava em Florença—seria necessário juntar
aos versos a música. A ópera nasceu, portanto, de um equívoco filológico. Pois nada
no mundo se parece menos com uma tragédia de Sófocles ou de Eurípides do que
uma ópera de Monteverde ou de Alessandro Scarlatti.
Os primeiros libretos foram escritos pelo poeta
Ottavio Rinuccini: Dafne (1597) e Euridice (1600); a música escreveu-a o
maestro Jacopo Peri (1561-1633).
Outra música para a mesma Euridice foi escrita em -1600 pelo cantor Giulio Caccini (1550-1618), autor de um
volume de Nuove Musiche, isto é, canções novas porque para uma voz só: um
verdadeiro revolucionário.
Entre a música de Peri e a de Caccini há diferenças
evidentes: aquele declama o texto; este enfeita-o de melodias. O princípio é,
porém, o mesmo: o canto é “homófono” (“monódico”). É a vitória do indivíduo sobre
o coro; é o individualismo na música.
Mas aos ouvidos acostumados à polifonia a capela e
aos acordes vocais soava a voz individual como insuficiente, como que precisando
de um complemento. Devia acompanhá-la um instrumento, com preferência um
instrumento de teclas, um dos precursores do nosso piano, porque nestes
instrumentos se podem tocar acordes, substituindo uma multidão polifônica
inteira. Mas não houve intenção nenhuma de desviar a atenção, do cantor para o
instrumentalista. Este último limitou-se a fornecer a "harmonia”, completando
continuamente os sons cantados, tocando acordes mais em baixo: é o basso
continuo.
O novo gênero institui a soberania do cantor: é ele,
o indivíduo, que está no centro, em vez do coro. Parece-se com o monarca absoluto,
esse outro personagem central do Barroco, podendo dizer: "La musique c’est
moi.” Em seu torno gira a corte toda de arquitetos e maquinistas de que se
precisa para encenar o espetáculo.
Os instrumentalistas que tocam o “baixo-contínuo”, representam
o povo, ficando na sombra, mas apoiando o edifício que cairia sem seu trabalho
incessante. Contudo, o instrumentalista também guarda certa liberdade. O basso
continuo não foi completamente escrito pelos compositores: os acordes foram
apenas notados em espécie de linguagem cifrada, em números que indicam os
intervalos, e que podem ser interpretados de maneiras diferentes. Ao “baixista”
ficava larga margem de improvisação.
A esse respeito, também é soberano, assim como o
súdito do monarca absoluto guardava, no foro íntimo, a liberdade da
consciência. O canto monódico e o baixo-contínuo: eis os elementos da música barroca.
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