domingo, 22 de outubro de 2017

AS ORIGENS DA ÓPERA E DO #BAIXO CONTINUO





Arte Clássica—Arte Barroca: eis os dois conceitos contraditórios a cujo antagonismo o grande Heinrich Woelfflin subordinou toda a história das artes plásticas. Parecem irreconciliáveis, na retrospectiva. Rafaelo e Bernini são polos opostos, para a crítica moderna. Aos contemporâneos, a diferença não parecia menor, mas antes gradual do que essencial. Os clássicos e os barrocos, estes e aqueles acreditavam ter feito o melhor para ressuscitar a arte grega antiga; e a um crítico do século XVII não se afigurava paradoxal a ideia de que Bernini não passava de um Rafaelo mais “intenso” e de maiores recursos técnicos. A Renascença, pensavam, não tivesse atingido completamente o grande objetivo de ressuscitar as artes da Antiguidade; o estilo barroco não foi sentido como viravolta revolucionária, mas como progresso.

Quanto mais se estudavam os testemunhos literários da Antiguidade, tanto mais se fortaleceu a opinião de que os gregos, na poesia e no teatro, tinham empregado os recursos da palavra e do canto, juntamente, para dar expressão aos sentimentos. Mas a música da Renascença não estava em condições de realizar esse ideal. Pois só admitia, na música sacra e no madrigal, o canto a capela, polifônico, de várias vozes contrapontisticamente combinadas.

E pode-se imaginar o papel de Orestes ou o de Electra, personagens de tragédia, cantado por um pequeno coro misto? Essa impossibilidade foi demonstrada por Orazio Vecchi (1550-1605), polifonista erudito que contribuiu com a maior eficiência para destruir o ideal da polifonia vocal. Na sua peça Anfiparnasso commedia harmônica, os atores no palco fazem apenas os gestos; seus papéis são cantados, nos bastidores, por coros de 4 e 5 vozes. O efeito é irresistivelmente cômico. A obra teria sido deliberadamente parodística? Em todo caso, mostrou indiretamente o caminho para o canto homófono, individual. O Anfiparnasso, escrito em 1594, ano da morte de Orlandus Lassus e de Palestrina, foi publicado em 1597. No mesmo ano de 1597 recitou-se em Florença a primeira ópera.

As origens da ópera florentina são literárias (M. Schneíder, Die Anfaenge des basso continuo, Leipzíg, 1918; H. Kretzschmar, Geschichte der Oper, Leipzig, 1919; R. Rolland, Histoire de VOpèra avant Lully et Scarlatti, 2.a ed. Paris, 1931). Em torno do mecenas Bardi reuniu-se um grupo de eruditos e literatos, entre eles Vincenzo Galilei, o pai do astrônomo, para estudar os motivos do fracasso, dos poetas trágicos italianos do século XVI em imitar a tragédia grega. Tinham sido muitos os equívocos com respeito à arte de Sófocles e Eurípides. Sobretudo, os poetas italianos não tinham prestado atenção ao fato bem testemunhado de que os papéis, na tragédia antiga, foram ditos numa espécie de "recitativo”, de "parlando”, isto é, declamação que se aproxima do canto. Para conseguir o verdadeiro efeito trágico—assim se pensava em Florença—seria necessário juntar aos versos a música. A ópera nasceu, portanto, de um equívoco filológico. Pois nada no mundo se parece menos com uma tragédia de Sófocles ou de Eurípides do que uma ópera de Monteverde ou de Alessandro Scarlatti.

Os primeiros libretos foram escritos pelo poeta Ottavio Rinuccini: Dafne (1597) e Euridice (1600); a música escreveu-a o maestro Jacopo Peri (1561-1633). Outra música para a mesma Euridice foi escrita em -1600 pelo cantor Giulio Caccini (1550-1618), autor de um volume de Nuove Musiche, isto é, canções novas porque para uma voz só: um verdadeiro revolucionário.

Entre a música de Peri e a de Caccini há diferenças evidentes: aquele declama o texto; este enfeita-o de melodias. O princípio é, porém, o mesmo: o canto é “homófono” (“monódico”). É a vitória do indivíduo sobre o coro; é o individualismo na música.

Mas aos ouvidos acostumados à polifonia a capela e aos acordes vocais soava a voz individual como insuficiente, como que precisando de um complemento. Devia acompanhá-la um instrumento, com preferência um instrumento de teclas, um dos precursores do nosso piano, porque nestes instrumentos se podem tocar acordes, substituindo uma multidão polifônica inteira. Mas não houve intenção nenhuma de desviar a atenção, do cantor para o instrumentalista. Este último limitou-se a fornecer a "harmonia”, completando continuamente os sons cantados, tocando acordes mais em baixo: é o basso continuo.

O novo gênero institui a soberania do cantor: é ele, o indivíduo, que está no centro, em vez do coro. Parece-se com o monarca absoluto, esse outro personagem central do Barroco, podendo dizer: "La musique c’est moi.” Em seu torno gira a corte toda de arquitetos e maquinistas de que se precisa para encenar o espetáculo.

Os instrumentalistas que tocam o “baixo-contínuo”, representam o povo, ficando na sombra, mas apoiando o edifício que cairia sem seu trabalho incessante. Contudo, o instrumentalista também guarda certa liberdade. O basso continuo não foi completamente escrito pelos compositores: os acordes foram apenas notados em espécie de linguagem cifrada, em números que indicam os intervalos, e que podem ser interpretados de maneiras diferentes. Ao “baixista” ficava larga margem de improvisação.


A esse respeito, também é soberano, assim como o súdito do monarca absoluto guardava, no foro íntimo, a liberdade da consciência. O canto monódico e o baixo-contínuo: eis os elementos da música barroca.



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