A ópera florentina foi obra de intelectuais. A ópera
do Barroco Médio já é arte aristocrática, da corte, assim como a arquitetura e
a pintura da mesma época. É suntuosa e pomposa. Mas assim como nas artes
plásticas barrocas, existe nela uma tensão íntima, produzida pela presença do
elemento realista. Ao lado dos pintores acadêmicos de Bolonha, dos Carracci e
Reni, está o realista Caravaggio; ao lado de El Greco, o realista Riberà. Em
Bemini coexistem a soberbia atlética e o naturalismo do sentimento. Em Zurbarán
coexistem o realismo espanhol e a mística. A ópera barroca é produto de uma
colaboração fabulosa de artes arquitetônicas, cênicas, teatrais, musicais, a
serviço de um novo realismo: da expressão dos sentimentos humanos pela melodia cantada.
Cláudio
Monteverde (1567-1643) (Edição
das Obras Completas por F, G. Malipiero, 13 vols., 1926 e Seguintes; F. G.
Malipiero, Monteverde, Milão, 1929; H. Prunières, La Vie et Voeuvre de Cláudio
Monteverde, 2.® ed., Paris, 1931; H. F. Redlich, Cláudio Monteverde, Bern a ,
1949; M. Le Roux, Cláudio Monteverde•, Paris, 1951; L. Schradc, Monteverde,
Creator of M odem Music, Londres, 1952) foi maestro de música na corte de
Mântua; depois, regente do coro da basílica de San Marco, em Veneza; ordenou-se
padre; seu túmulo fica na igreja dos Frari, perto do mausoléu de Tiziano. Foi
homem altamente combativo, consciente do seu papel de revolucionário de uma
arte multissecular. Suas Vesperae Virginis (1610), escritas na maneira nova,
terminam com uma Missa a capela para 6 vozes, em estilo palestriniano. Será que
o compositor quis demonstrar aos inimigos—de que havia muitos—sua capacidade de
escrever no estilo “antigo”? É como se Stravinsky escrevesse uma sinfonia
haydniaha para desmentir o boato de sua incapacidade de fazer música “acadêmica”;
ou Schoenberg, um lied à maneira de Schubert. Ou então, seria aquela Missa
espécie de expiação de um crime deliberadamente cometido, sinal de má
consciência? Aquelas Vesperae, hoje facilmente acessíveis numa edição de H. F.
Redlich (1934), já aparecem com certa frequência em nossos concertos: obra
altamente convincente, de forte expressão religiosa. Para os contemporâneos de
Monteverde, foi mesmo “forte” demais. Nunca antes se ouvira música sacra assim,
com maciço acompanhamento instrumental e com solistas, cantando árias de
comovente dramaticidade.
Motivo suficiente para o compositor fazer aquele
gesto de penitência contrita. Monteverde tinha introduzido na música sacra os
modos e meios de expressão da ópera. É mesmo o verdadeiro criador do gênero.
Na verdade, o Orfeo (1607), de Monteverde, é a
primeira ópera que merece esse nome. Ainda hoje, nas edições-arranjos devidas a
compositores modernos como Alfredo Casella e Carl Orff, ainda hoje faz forte
efeito em nossas casas de ópera. Os solistas dominam o palco: pela primeira
vez, a expressão musical é realmente dramática; o sentimento, puramente humano.
Em torno dos solistas cantam coros; mas não têm nada que ver com os coros a capela
da época polifônica; já desempenham exatamente o mesmo papel como os coros numa
ópera de Gounod ou Verdi. A orquestra que acompanha os acontecimentos musicais
no palco—é a primeira vez na história da música, que aparece a orquestra; e é
surpreendentemente numerosa, composta de uma multidão de instrumentos de
cordas: os contemporâneos chamavam-na de “guitarra enorme”. A todos os
respeitos é Monteverde o criador da música moderna.
Foi, naturalmente, muito combatido. Um musicólogo
erudito, o Cônego Giovanni Maria Artusi, polemizou contra Monteverde exatamente
assim como Hanslick polemizará contra Wagner. Mas não foi possível voltar ao
passado. Da segunda ópera de Monteverde, Arianna (Í608), perdeu-se a partitura;
só possuímos uma pária: o célebre “Lamento” ("Lasciatemi morire...”), que
pertence até hoje ao repertório de todas as cantoras (e cantores) de concerto;
salvou-se porque foi durante toda a primeira metade do século XVII a melodia
mais cantada na Itália, nas cortes, nos salões, nas tabernas, nas ruas, assim
como hoje um “sucesso” de música popular. Monteverde tinha explorado a fundo a
“verdade” da expressão; foi o primeiro que soube exprimir a tristeza, o desespero,
a paixão, o triunfo. Seus precursores, a esse respeito, não foram os operistas
llorentinos, mas os madrigalistas: Marenzio e Gesualdo, sobretudo. Mas a
diferença é notável: naqueles, as dissonâncias foram a consequência da
adaptação da escritura polifônica à declamação expressiva do texto; Monteverde,
porém, escreve conscientemente de maneira homofônica. Chega a dissonâncias, não
porque não sabe evitá-las, mas quando quer encontrá-las; e resolve-as pelos
acordes harmônicos do baixo-contínuo. É música moderna.
Orfeo e Arianna foram escritas para a corte de
Mântua. Alguns decênios mais tarde escreveu Monteverde suas últimas óperas para
os teatros de Veneza. Mas não é possível acompanhar, passo por passo, a
evolução do grande dramaturgo musical, porque as obras intermediárias se
perderam. Só possuímos o Combattimento di Tancredo e Clorinda (1624), obra
vigorosa, mas de menor vulto, que ainda hoje pode ser e é aproveitada como
música de bailado. A evolução da técnica de Monteverde é, porém, evidente
através das suas oito coleções de madrigais, publicadas entre 1587 e 1638; o
madrigal foi seu campo de experiências, assim como para Beethoven a sonata para
piano. Esses madrigais talvez sejam, por isso, as obras mais características do
mestre, revelando "seu esplendor e sua miséria”. Da primeira coleção até
os Madrigali guerrieri e amorosi (1638) podemos observar, em todos, sua
curiosidade insaciável de pesquisa, seus ocasionais acertos maravilhosos, seus
muitos fracassos. É música experimental. Os madrigais dos compositores inglêses
elisabetianos, os de Gastoldi e Marenzio, até os de Gesualdo podiam ser, em
nosso tempo, revivificados pelas associações madrigalescas. Os de Monteverde,
não. São objetos para estudos históricos e da psicologia do compositor. Mas nem
em todos os casos é assim. Vale a pena chamar a atenção para os seis madrigais
Lagrime d’amante al sepolcro deli’amata, que a eminente professora francesa
Nadia Boulanger mandou gravar em disco.
Enfim, Monteverde teve a capacidade, assim como
Verdi dois séculos e meio depois, de renovar-se na velhice. O fruto maduro de
tantas experiências meio sucedidas é a Ulncorovazionp di Poppea (1642):
tragédia musical o enredo—a suntuosa decadência moral do Império
Romano—prestava-se especialmente para ser transfigurada em música pelo gênio de
Monteverde; lembra o teatro elisabetiano, como se possuíssemos óperas
congeniais tiradas das tragédias de John Webster ou John Ford. Essa obra é a primeira
música profundamente psicológica, representando "caracteres”, personagens
dramáticos. Desde a reedição de 1950, essa última ópera de Monteverde
reconquistou o palco moderno. A representação no Festival de, Aix-en-Pnovence,
em 1961, teve sucesso tão grande que a obra parece agora continuar no
repertório.
Monteverde, o grande renovador, foi, durante
decênios, objeto preferido de estudos musicológicos. Continua a sê-lo. Mas não
é uma figura só histórica. Orfeo, UIncoronazione di Poppea e as Vesperae
Virginis voltaram a fazer parte integral da Música que entre nós vive.
Dos outros operistas do grupo veneziano não se pode
afirmar o mesmo, apesar das reedições modernas. Francesco Cavalli (1602-1676)
parece, em comparação com Monteverde, quase arcaico. Os recitativos
dramaticamente agitados, na sua ópera Giasone (1649), não significam progresso
na linha veneziana; antes realizam plenamente aquilo que fora o objetivo dos
primeiros operistas florentinos. Arcaico também parece o Réquiem para 8 vozes que
Cavalli escreveu em 1675, destinando-o para os seus próprios funerais: é obra
de solenidade austera.
"Progressista” foi Marc'Antonio Cesti (1623-1669): já lhe importa menos
a verdade da expressão do que a beleza da melodia. Escreve árias. La Dori
(1661) foi sua ópera mais famosa. Possuímos notícias pormenorizadas sobre a
representação de outra ópera sua, II Pomo d’oro (1666), escrita para núpcias na
corte imperial de Viena: deve ter sido um espetáculo deslumbrante, com a
colaboração de coros e bailados, numa arquitetura suntuosa, especialmente
construída para esse fim, e com a aplicação de truques cênicos que pareciam
fazer participar do espetáculo o céu, os ínferos e a Natureza toda.
Nem a leitura dessas obras nem sua representação em
arranjos modernos dá ideia aproximada do que foi uma noite de ópera no século
XVII. Então, sim, foi realizado o sonho de Wagner, o Gesamtkunstwerk, a obra na
qual colaborariam a poesia dramática, a música, a dança e todas as artes
plásticas. Em nossas bibliotecas ainda se conservam os desenhos cenográficos de
arquitetos como os membros da família Galli-Bibbiena e os irmãos Bumacini, para
representações de óperas em Veneza, Viena e Munique, superando, de longe, tudo
que existe de arquitetura principesca em Versalhes ou Madri. Mas as artes
cênicas de maquinistas como Nicola Sabbatini ou Giacomo Torelli—a descida de
deuses olímpicos em máquinas de voar, a transformação repentina de bosques povoados
de ninfas e sátiros em lagos cobertos de navios—essas artes da cena barroca
foram mantidas em segredo; e estão perdidas para sempre.
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